Chicote Verbal

''Mas não tem nada não
tenho meu violão''

(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)

17.11.03

"De que calada maneira
você chega assim sorrindo
(como se fosse a primavera
e eu morrendo)?
E de que modo sutil
me derramou na camisa
todas as flores de abril?"

(Como Se Fosse A Primavera - Chico Buarque/Pablo Milanés)

Meu negócio é mesmo tocar em bares. E agora isso nem me desagrada muito. Pelo contrário, nunca foi tão bom ser um mero menestrel de boteco. Já digo por quê.
O negócio lá da banda de formaturas não deu certo, graças a Deus. Como eu disse, era um troço meio constrangedor. Subíamos ao palco usando umas roupas horríveis, havia dançarinas e até mesmo nós, os músicos, éramos obrigados a participar de uma ou outra coreografia. Depois de umas duas ou três festas, fui falar com o Déo para pedir minha demissão. Expliquei, tentando não ofendê-lo, que tocar em formaturas não era minha idéia de trabalho. Ele relutou bastante mas acabou cedendo, e me pagou tudo conforme o combinado. Quis até me dar uma gratificação de vinte porcento, a qual não aceitei. Orgulho besta, aquela grana a mais daria uma boa ajuda agora que eu estava mais uma vez mergulhado na incerteza.
Não durou muito a incerteza, porém: uma semana depois do malfadado baile de formatura, recebi o telefonema do Rubão, baterista e velho companheiro de copo. O Rubão tinha sido convidado para tocar num bar do Tatuapé, mas como aparecer por lá só com bateria e voz seria um tanto estranho, lembrou-se de mim. Eu estaria interessado em tocar no tal bar, com chances de me tornar músico fixo? Oras, mas que pergunta! No dia seguinte, uma quinta-feira, eu já estava tocando por lá. No sábado o proprietário me veio com o contrato. Ia ganhar menos do que ganharia com a banda do Deoclécio e mais do que ganhava no bar anterior. Considerei isso um lucro e assinei sem discutir. Dava para o aluguel, a cerveja era por conta da casa, do que mais eu precisava?
Eu precisava de muito mais, essa é a verdade, e comecei a perceber isso ontem. Tinha acabo de tocar a já insuportável Flor de Lis, do Djavan, e tentava pescar entre os pedidos do público particularmente atencioso algo que eu soubesse tocar. Então eu a vi. Cabelos vermelhos seguros por duas presilhas na frente, muitas pulseiras, muito bonita e quieta no meio de um grupo barulhento. As pessoas à sua volta pediam "Travessia!", "A Banda!", teve até um que me lembrou o Sabichão, gritando "Chega de Saudade!" com força. No meio dessa balbúrdia, mais li seus lábios do que ouvi a garota de cabelos vermelhos dizer "Beatles", com um meio-sorriso encantador no rosto.
– Hein? Beatles?
– ...
– Você mesma – ficou vermelha, bom! –. Você pediu Beatles?
Ela só acenou que sim e eu comecei a tocar. Torceu o nariz para minha versão bossa-nova de Eleanor Rigby, mas notava-se que estava satisfeita por ter um pedido seu, que sequer fôra formulado direito, atendido tão prontamente. Quanto a mim, sentia-me encantado por ela, encantado de uma forma de que já nem me lembrava mais. Terminei a música e ainda tratei de estragar Ticket To Ride, para desespero da pobre garota. Depois resolvi fazer um intervalo e fui falar com ela. Não lembro direito o que dissemos, só me recordo de tê-la obrigado a me prometer que voltaria na semana seguinte. Ao fim da conversa eu tinha um nome e um número de telefone anotados na palma da mão e um sorriso bem bobo na cara. Voltei ao meu banquinho, esperei o Rubão voltar do banheiro e continuamos a tocar. No meio de Chega de Saudade (inevitável, há Sabichões adoradores de João Gilberto por toda parte), ela saiu. Uma pena.
Ao fim da noite peguei meu pagamento da semana no caixa e fui embora. Podia pegar uma lotação mas resolvi ir andando até o metrô. Segui pela Coelho Lisboa até a Praça Silvio Romero, onde alguns trabalhadores sonolentos já esperavam seus ônibus. Desci a Tuiuti e em cinco minutos estava no metrô Tatuapé. Uma senhora vendia doces e cigarros numa banquinha minúscula. Comprei um Diamante Negro, um Marlboro (sim, UM Marlboro, vinte centavos. Pra que comprar um maço se eu nem fumo mais?) e subi as escadas para a passarela do metrô. Acendi meu cigarro e fiquei lá contemplando os carros, ônibus e lotações que se arrastavam na direção do centro, como dinossauros cansados. Eu olhava para os carros, respirava a fumaça da cidade que acordava, olhava os prédios no horizonte, o concreto por todos os lados, e senti um repentino amor pela cidade. Terminei o cigarro, passei pela catraca e desci para a plataforma. Dentro do trem, interrompi a leitura de um bom Dostoiévski para contemplar as pessoas. Homens cansados logo cedo, mulheres que cabeceavam de sono. Homens que liam livros de marketing pessoal, mulheres que consumiam literatura esotérica. Office boys conversando em seu dialeto incompreensível da periferia. Senhoras evangélicas que rendiam louvores ao Senhor e citavam passagens da Bíblia entre um e outro comentário maldoso a respeito dos irmãos ou do pastor Fulano. Um senhor de terno surrado olhava sem disfarçar para o decote da moça entediada sentada à sua frente. Apenas pessoas, das mais vulgares, mas eu senti ondas de ternura por elas. Queria comentar Dostoiévski para ver se convertia os leitores de maus livros, tentar conversar com os boys, dizer às senhoras que pastor Fulano devia ter algo de bom, não é possível!, falar para o velho tarado tomar vergonha na cara (em tom jovial, é claro!), talvez até dar um jeito de ter acesso ao decote e a toda a moça ainda aquela noite.
Todo esse amor besta, essa ternurinha de folhetim, era culpa de uma só pessoa, é claro. A menina dos cabelos vermelhos me desarmou desse jeito esquisito, e agora eu sou um adolescente boboca e feliz. Conto os dias para o próximo sábado, quando a verei novamente. Estou ensaiando desde já um repertório razoável dos Beatles.
Luiza? Que Luiza?

1.10.03

"We are the champions, my friend
And we'll keep on fighting 'til the end"

(We Are The Champions - Queen)

Como eu esperava, a vida de músico de rua não deu muito certo. Ora era alguém que vinha reclamar do barulho, ora era a polícia sem mais o que fazer, ora era algum fiscal da prefeitura querendo mostrar serviço. O dinheiro, que foi muito bom na primeira semana, foi escasseando. Era necessário procurar sempre novos lugares para tocar, o que não é nada fácil: é raro o canto de São Paulo que não conte com seu próprio menestrel. No fim das contas me enchi daquilo, vendi o amplificador e o microfone por um preço até maior do que esperava e fiquei dois meses só no puteiro mesmo. Quando o dinheiro acabou, vendi o computador para pagar mais um mês de aluguel. Ao que tudo parecia minha vida logo se tornaria bem sem graça. E foi aí que surgiu o Baiano, sempre ele:
- Rapaz, você não pode viver assim.
- Sei disso, Baiano. Mas tá difícil. Os poucos bares que ainda contratam músicos querem pagar quase nada. Tocar na rua é suicídio. Eu poderia procurar algo numa praça de alimentação de shopping center, mas isso eu deixo para quando não estiver mais nenhuma alternativa mesmo.
- Então eu tenho uma proposta para te fazer. Bom, eu não: o Deoclécio.
- Deoclécio?
- Meu irmão mais novo. Ele tem uma banda dessas que tocam em formaturas. Acontece que o baixista morreu num acidente e eles precisam de um substituto logo. Você toca baixo, não?
- Claro! Se eu tocar alto o povo vai embora.
- Continue na música, rapaz. Como humorista você tava era lascado...
- Hum. Bom, como eu faço para falar com seu irmão?
- Ah, amanhã tem ensaio da banda. Te dou o endereço e você vai lá.
No dia seguinte eu estava andando pelas ruas da Mooca procurando o endereço que o Baiano me passara. Demorei a encontrar; o bairro é cheio de ruas iguais. Depois de hora e meia andando, suado e já xingando o Baiano, o Deoclécio e toda a população de Monte Santo, finalmente encontrei a casinha acanhada do baterista. Mal toquei a campainha e a porta se abriu. Ao que parecia, estavam me esperando: os membros da banda estavam todos na sala, sentados no sofá esgarçado ou espalhados pelo chão. O que abrira era Gilberto, o dono da casa.
- Você é o Luís, o tal baixista de que o Dionísio falou?
- Sou sim.
- Bom. Aquele ali de óculos é Alexandre, o guitarrista. Do lado dele está Maurício, o tecladista. Os dois no sofá são o guitarrista-solo e o percussionista, Edu e Cabeça. E as duas beldades - apontou para duas gordinhas - são Alice e Shirley, que fazem o backing vocal.
- Prazer em conhecê-los - eu disse timidamente, e todos acenaram de forma vaga. Exceto o Cabeça, um preto de quase dois metros de altura, que teve a gentileza de levantar-se para me cumprimentar. - E o Deoclécio?
- Ah é. DÉO! Ô DÉO!
- Já vou! - uma voz irritada e um tanto aguda.
- Ele já vem.
Ouviu-se uma descarga, barulho de torneira. Então uma porta do corredor se abriu e de dentro do banheiro saiu um homem de cerca de 35 anos, magro demais e enfiado numa calça de couro, sem camisa. Tinha um lenço no pescoço, andava com as pernas muito juntas e os braços colados ao corpo. Uma bicha quase caricata.
- Olá. Eu sou o Deoclécio. O Nísio fala muito bem de você, rapaz. E então, pronto para embarcar em nossa pequena aventura? - ele falava assim mesmo, e olhando por cima do meu ombro, como se estivesse lendo seu texto num teleprompter logo atrás de mim.
- Claro, Claro.
- Excelente! Então vamos ensaiar!
Fomos para um quintal tímido nos fundos da casa. O equipamento dos caras era impressionante, altíssima tecnologia contrastando com a decadência geral do cenário. O instrumento do falecido baixista era um Warwick de 5 cordas lindíssimo.
- Bom, Luís. Essa pasta aí tem as músicas que tocamos. Nada de muito complicado: Queen, Pink Floyd, alguma coisa de Beatles, um axé aqui e ali, um quase nada de MPB, um pouco de samba, enfim, música de formatura. Vamos ver como você se sai.
Tocamos por cerca de duas horas um repertório dos mais ecléticos. Nas três ou quatro primeiras músicas eu ainda estava travado: há muito tempo não pegava num contrabaixo, e nunca havia tocado a sério um de cinco cordas. Mas pelo jeito o Deoclécio gostou do meu trabalho, porque ao fim do ensaio eu estava contratado.
- Muito bem, rapaz. Pode levar o baixo e o amplificador com você. Vai estudando, que temos uma formatura para fazer daqui a dez dias.
- Obrigado, Deocléio.
- De nada. E... Luís?
- Sim?
- Me chame de Déo, ok? Apenas Déo.
- Tudo bem. Déo.
- Melhor assim.
Voltei para casa de táxi com meu novo instrumento de trabalho e já estou ensaiando o repertório da banda há três dias. Tenho que estar afiado para a primeira apresentação. E torcer para que nenhum amigo me veja no palco. É meio constrangedor tocar em formaturas.

18.6.03

"Jumento não é
Jumento não é
O grande malandro da praça
Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém
Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça
Mas quando a carcaça ameaça rachar
Que coices, que coices
Que coices que dá"

(O Jumento - Enriquez/Bardotti/Chico Buarque)

Muito bem, de volta à vida. Por onde andei esse tempo todo? Trabalhando num escritório! Sim, eu sei: inacreditável. Agora que acabou nem eu acredito que foi de verdade.
Um dia cheguei ao bar e o dono me chamou para conversar. Precisava cortar despesas. Estava tudo caro. Havia cada vez menos clientes. Tinha certeza que eu entenderia. Era doloroso pra ele. A ladainha de sempre.
– Então não vai mais ter música ao vivo no bar, Epa? – Epaminondas o nome dele, todos o chamam de Epa.
– Hum... Mais ou menos. Comprei uma jukebox.
Comecei a rir. Sempre ouvira falar desse medo que as pessoas têm de serem substituídas por máquinas e perderem seus empregos. Mas nunca cogitara nem de longe a hipótese de vir a acontecer comigo. Uma jukebox, quem diria! Bom, pelo menos o Sabichão teria seus pedidos sempre atendidos. Desde que tivesse dinheiro, claro.
– Então estou fora?
– Infelizmente. Mas não se preocupe! Você receberá todos os seus direitos!
"Todos os meus direitos" não era muito, uma vez que não era registrado. Uns caraminguás que mal davam para mês e meio. Comecei a procurar outros bares para tocar mas parecia que todos haviam comprado jukeboxes e não queriam mais saber de músicos. E como o dinheiro que ganhava no puteiro não dava nem pro aluguel, deixei meus pudores de lado e fui procurar emprego.
Não tinha qualificações, então tive que me contentar com um cargo de trainee do auxiliar do sub-alguma-coisa. O Baiano que me arrumou o emprego. Um primo em segundo grau cujo cunhado era dono da empresa, alguma coisa assim. Trabalho burocrático e chato, mas dinheirinho garantido todo mês. Fui ficando. O salário mais a mixaria que ganhava no bordéu me proporcionavam o suficiente para o aluguel, as contas e um cinema de vez em quando. Muito de vez em quando.
Já estava até me acostumando com a idéia de uma brilhante carreira no mundo das seguradoras de quinta categoria quando o negócio começou a degringolar: o cunhado do primo do Baiano começou a ter prejuízo e teve que demitir alguns funcionários, sendo três da minha área. E como não podia botar jukeboxes no lugar deles, acabou sobrando para mim. Trabalhava por quatro homens recebendo um salário de anão, se é que anão ganha proporcionalmente ao tamanho. Acho que não.
Aquilo foi me desgastando. Tinha que fazer hora extra todo dia, e no fim do mês as horas extras não eram pagas. "Depois você compensa", dizia o cunhado do etc., e nunca especificava quando seria esse "depois". Sem tempo nem para dar uma cochilada depois do trabalho, chegava em casa, tomava um banho e saía correndo pra ir tocar. Comecei a errar acordes com mais freqüência que o habitual, a trocar as letras das músicas. Não que alguém reparasse – num puteiro o músico é um homem invisível – mas aquilo estava mexendo com meus brios.
Um dia acordei com o toque estridente do rádio-relógio. Seis da manhã. Dei um tapa no aparelho maldito e voltei a dormir. Ele tocou novamente às seis e nove. Seis e nove. Por que esses rádio-relógios têm o intervalo programado para NOVE minutos? Por que não dez? O inventor do rádio-relógio tinha nove dedos? Comecei a pensar essas bobagens e percebi que estava me deixando cercar por essas coisas sem sentido: o rádio relógio, as pessoas que se empurravam feito gado no metrô, um trapo me apertando o pescoço, o paletó num país tropical. Olhei para o canto e lá estava meu violão velho de guerra.
Não precisei pensar muito: vesti uma calça jeans e uma camiseta, calcei um sapato velho, peguei o violão e repeti pela última vez a via-crúcis da minha casa até a Paulista. Não subi para o escritório, no entanto: Postei-me na calçada em frente ao prédio e comecei a tocar. As pessoas que iam chegando, muitas delas conhecidas, olhavam surpresas e divertidas para o ex-funcionário, agora metido a menestrel da metrópole. Meio de piada alguém jogou uma nota de um real na caixa do violão. Tive uma sensação de dejà-vu.
Quando meu gerente chegou e viu aquilo quase teve um troço.
– Rapaz, você quer perder seu emprego?
– Não há nada que eu queira mais no mundo, Seu Ferreira.
– Você é louco???
– Totalmente.
– Está na rua!
– Não, estou na calçada. Algum pedido, Seu Ferreira?
– VÁ PRO INFERNO!
– Ok. De que vale o céu azul/e o sol sempre a brilhar/se você não vem/e eu estou a te esperar...
Bufando de ódio, Seu Ferreira entrou no prédio.
No fim do dia, tendo arrecadado o dobro do que ganharia num dia de trabalho, subi para o escritório. Meu termo de rescisão estava pronto. Em seis meses eu era demitido pela segunda vez, mas agora estava feliz: pelo menos tinha meu FGTS pra gastar.
Desde então tenho tocado nas ruas e não posso reclamar: Ganho mais do que ganhava no bar antes. Consegui comprar um amplificador decente e um microfone, e espero já poder arrumar um percussionista no próximo mês. Continuo procurando emprego em bares, no entanto. Essa vida de músico mambembe é meio arriscada demais pro meu gosto. Se alguém aí souber de um bar que precise de um músico meia-boca mas de bom coração, por favor me diga.

16.1.03

"Eu vou desdizer
aquilo tudo que eu lhe disse antes"

(Metamorfose Ambulante - Raul Seixas)

Reconquistar Luiza. Será? Não sei... Passei tanto tempo endeusando Luiza, e quando nos reencontramos não foi nada do que eu esperava. Sim, foi bom, foi ótimo, mas não foi aquela revolução toda que eu esperava. Sexo razoavelmente agradável, com a mulher indo embora na manhã seguinte. Tudo o que um homem poderia querer. Senti uma certa exaltação durante aquela manhã, só pensava nela o tempo todo. Mas acho que era a fome: Depois do almoço, eu nem lembrava direito como tinha sido.
O fato é que Luiza é só uma garota. E existem muitas outras por aí. Mulheres até mais interessantes que ela, por mais que me doa admitir isso agora. Sábado, por exemplo. Estava tocando no bar quando entrou o Sabichão. Droga, achei que ele tivesse morrido. Mas lá estava ele, com algumas pessoas que eu nunca tinha visto (ele deve trocar de amigos de vez em quando. Ninguém o agüentaria por muito tempo). Sentaram-se numa mesa comprida e ele começou logo a fazer acordes com os dedos da mão esquerda pressionando cordas imaginárias no pulso direito. Coisa irritante. Pensei em chamá-lo para dar uma "canja" no palco, só para fazê-lo passar vergonha. Aposto meu violão como ele não toca nada. Mas achei melhor ignorá-lo. Só que ao final da música que estava tocando, notei que ele me olhava fixamente e preparava-se para dizer algo. Ele ia gritar "Toca Chega de Saudade!", e depois ficar babando o ovo do João Gilberto. Ia, claro que ia. O Sabichão nunca deixa de fazer isso, faz parte de seu roteiro. No entanto, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, uma das meninas que estava na mesa gritou para o palco, com um delicioso sotaque carioca:
– Toca o Bonde do Tigrão!
Todos no bar riram, com exceção de duas pessoas: O Sabichão, visivelmente contrariado pela invasão, e eu, que apenas olhei com admiração e gratidão para a garota, emendando em seguida uma tosca versão bossa-nova do Bonde do Tigrão. Por essa ela não esperava. Nem o Sabichão, que não deve ter gostado nada de ver um funk carioca tocado com a sacrossanta batida de seu deus e senhor João Gilberto. Ele ficou amuado o resto do tempo, olhando para dentro de sua caneca de chope, enquanto eu e a garota trocávamos olhares. No intervalo, fui falar com ela.
– E aí? Gostou da música?
– Gostei muito. Bom saber que você conhece os clássicos da MPB.
– Hehehe. Qual o seu nome?
– Não adianta. Não tenho nome de música.
(Hein?!)
– Perdão?
– Não se faça de bobo. Meu pai é músico, conheço as táticas de vocês. Se eu me chamasse Carolina, você ia voltar lá pro palco e cantar Carolina para mim. Mas como eu não tenho nome de música, você vai cantar alguma coisa genérica. Você é Linda ou Este Seu Olhar. E depois vai me chamar para sair. Certo?
– Hum. Bom... É, em linhas gerais é isso aí...
– Pois é.
– Pois é. Então. Preciso voltar lá.
– Ok. Se quiser tocar mais algum funk, eu agradeço.
– Tá bom.
Voltei para o meu canto, mas não toquei funk nenhum. Fiquei encucado com a carioca. Não estou acostumado com isso, mulheres me desafiando daquela maneira. Talvez por isso mesmo não ache nenhuma mulher interessante, e viva sofrendo com a lembrança de Luiza. Mas se existe uma mulher como aquela, devem existir outras. E se existem outras, ficar sofrendo por uma que está distante é um desperdício de tempo.
Na hora de ir, ela veio se despedir de mim.
– Desculpe se fui malcriada com você. É que sou assim às vezes, falo sem pensar e...
– Gostei do seu jeito. Você é uma boa menina. Mas e aí, não vai nem me dizer seu nom...
– Bianca! – O Sabichão gritou da porta do bar – Só estamos esperando você!
(Maldito...)
– Ok, já tô indo. Bom, agora você já sabe meu nome. Tchau.
– Tchau. Obrigado.
– Ué, obrigado por quê?
– Ah, nada. Deixa pra lá.
E lá se foi ela. Acho que não nos veremos de novo. Sequer trocamos números de telefone. Bom, talvez eu pergunte ao Sabichão da próxima vez em que ele vier. Sim, sou capaz de fazer esse sacrifício. Bianca... É, não conheço mesmo nenhuma música com esse título. Talvez eu tenha que compor.

6.1.03

"It's mightier than swords:
I could kill you, sure, but I could
Only make you cry with these words"

(Get Me Away From Here I'm Dying - Belle & Sebastian)

Passei a semana toda após o Natal pensando que nada superaria aquela noite fazendo serenata para os velhinhos no asilo. Ah, se eu soubesse o que o Ano Novo me reservava...
No dia 29 recebi o telefonema de um velho companheiro de trabalho. Um baterista que chegou a me acompanhar nos bons tempos em que o bar tinha palco e eu tinha dinheiro. Estava desesperado: Sua banda tinha sido contratada para tocar na virada do ano. Festa de uns bacanas em Osasco, boa grana, repertório fácil, bebida de graça. Só que o guitarrista e vocalista da banda tinha resolvido ter um ataque de vaidade no Natal e abandonara o barco, deixando a ele e o baixista de calças na mão. Bom, a história parecia comprida demais, então achei melhor ser direto:
– Quanto?
Ele me disse uma quantia razoável. Hum.
– E bebida à vontade?
– À vontade.
– Tô nessa. Mas precisamos ensaiar.
– Tudo bem. Não tem muito o que ensaiar, o repertório é aquele de sempre: Rock antigo, uma ou outra balada, umas coisinhas de MPB e samba que é mais sua praia. Cê tira de letra. E então, posso confirmar você?
– Pode sim.
– Que beleza! Agora só precisamos de uma guitarra solo.
– Hum...
– Quê?
(ODEIO guitarristas-solo!)
– Nada não. Té mais, Jaime.
– Té mais.
Tudo combinado, só precisamos ensaiar um pouco no dia seguinte. O Jaime é muito bom no que faz, o baixista era excelente. E até que o tal guitarrista-solo nem era tão intragável. Não ficava fazendo macaquices nem nada assim. No dia 31, peguei o Jaime na casa dele e fomos para a tal festa. Passamos o som rapidamente enquanto os primeiros convidados chegavam. Lá pelas tantas, casa lotada, começamos a tocar. Hotel California, para começar de um jeito bem óbvio. E depois teve de tudo: Pearl Jam, REM, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Frank Sinatra, Strokes. Tudo muito bom, tudo muito bem.
E aí veio a ruptura. Lembro a música, Não Chore Mais. Pra falar a verdade, lembro até o acorde que errei: Era pra tocar um dó maior. Mas aí eu vi Luiza entrando no salão e enfiei um ré menor que não tinha nada a ver com a música. A voz tentou acompanhar o acorde torto e senti o olhar de estranhamento dos outros músicos. Fiz um esforço enorme para voltar a me concentrar na música, e consegui terminá-la sem deslizes maiores que o leve tremor na voz. Era ela. Luiza. Meu Deus, era Luiza. De verdade, ali na minha frente. O cabelo estava diferente. Notei – com prazer indisfarçável – que ela estava mais gorda. Mas logo pensei que ela também devia ter percebido que eu estava mais pálido e que minhas olheiras quase ocupavam a cara toda, então achei melhor declarar empate.
Ela não deu mostras de ter ficado abalada ao me ver. E não demonstraria mesmo, essa é uma das coisas que admiro nela, essa presença de espírito. Olhou rapidamente para mim e depois foi sentar-se numa mureta no lado oposto do salão. Estava com um sujeito esquisito, branco demais, cabelo cuidadosamente penteado. Ele era um dos dois únicos homens da festa a usarem gravata. O outro era o baixista, mas neste a gravata era um acessório arrojado, enquanto a gravata do acompanhante de Luiza o fazia parecer um rábula interiorano.
Terminada a música, inventei um intervalo (adoro inventar intervalos), tomei uma dose de uísque puro para criar coragem e fui falar com o casal.
– Oi.
– Ah, você – gelo –. Tudo bem?
– Tudo.
Apresentou-me a ele como "um amigo"; e ele a mim como "meu namorado". Porra nenhuma! Podia ver que era só um casinho, que ela promovera a namorado de improviso só para esfregar na minha cara. Ficamos os três lá conversando por um tempo. Bom, não exatamente: Eu conversava com Luiza e às vezes ouvia uns chiados de interferência que identificava vagamente como tentativas de participação por parte do rapaz de gravata. Estávamos num momento particularmente agradável da conversa (falávamos sobre Jorge Ben, enquanto ele, queixo apoiado na mão, dava demonstrações inequívocas de tédio profundo), quando o pager dele soou escandalosamente.
– Putz, trabalho. Me dão licença? Preciso fazer uma ligação.
– À vontade.
Ele saiu em direção aos banheiros para poder usar o celular longe do barulho. Voltou todo atrapalhado, dizendo que precisaria ir ao escritório para resolver um problema. Caprichei na minha cara de "Oh, mas que pena!" e me despedi dele, compungido.
– Se der eu volto aqui – Ele avisou para Luiza, que não parecia tão ansiosa pela volta do "namorado". Eu poderia aproveitar a oportunidade, mas também estava trabalhando na noite de Ano Novo, então retornei ao palco e anunciei uma sessão "voz e violão", para surpresa dos outros músicos, que não esperavam descansar mais tempo ainda. Rebusquei a memória à procura dos acordes certos e comecei a tocar "Don't Leave The Light On, Baby" do Belle & Sebastian.
Semanas antes de ir embora, Luiza aparecera com um CD da banda escocesa, toda empolgada. Eu torci o nariz, como sempre faço diante de novidades. E reagi com minha costumeira delicadeza quando o CD ainda nem chegara à metade:
– Isso é música de veado.
Ela não disse nada: Tirou o CD e não se falou mais nisso. Quando partiu, o CD foi uma das coisas que deixou para trás. E não sei se virei veado ou não, mas o fato é que comecei a apreciar de verdade aquelas músicas de uma alegria melancólica (ou vice-versa). Tocar essas músicas era uma forma de pedir desculpas a ela, e caprichei. Ah, Luiza! Eu poderia matá-la, claro. Mas eu poderia apenas fazer você chorar com essas palavras. E foi o que aconteceu: Movida pela situação toda, e ajudada pelo champanhe, ela foi às lágrimas. Pobre menina, tão frágil.
Depois voltamos ao repertório programado. Às quatro da manhã, o almofadinha não havia voltado. Ofereci carona a Luíza, tudo aconteceu como era de se esperar e acordei pela primeira vez no novo ano com ela surpreendentemente ao meu lado. Sorrimos um para o outro, compreendendo a ironia. Claro que depois ela foi tomada de culpa, e me pediu para não procurá-la mais, que era melhor assim, que éramos melhores separados. Mas, coisa rara!, sinto-me otimista. Afinal de contas, hoje é um novo dia de um novo tempo etc. etc. etc. E anotei mentalmente minha única resolução de Ano Novo: Reconquistar Luiza.

26.12.02

"Danço eu, dança você
na dança da solidão"

(Dança da Solidão - Paulinho da Viola)

Noite de Natal em excelente companhia: Uma garrafa de champanhe francês, presente do Baiano. Bebo e tento não pensar que é Natal. Mas é inevitável, então deixo os pensamentos fluírem livremente. Penso com tristeza nos mortos, e com maior tristeza ainda nos vivos que foram embora por vontade própria, por força das circunstâncias ou expulsos por essa minha obssessão pelo isolamento.
Minha mãe ligou pouco depois da meia-noite para desejar um feliz Natal e me dar conselhos. Que eu deveria pensar mais na vida. Que eu bem que podia ter ido passar o Natal com a família. Que já passei dos trinta anos, não posso mais ter esse comportamento de adolescente sem rumo. E etcetera. O mesmo papo de todos os anos. Eu só dou respostas evasivas, ou então me calo. O que responderia? Que penso muito na vida, e que é isso que me afunda? Que passar o Natal com a família seria um inferno, com meu pai me olhando com o desprezo que tem por mim desde que decidi que viria para São Paulo viver de música ou de qualquer outra coisa, em vez de ser engenheiro como ele e toda a família? Que sem rumo estamos todos, adolescentes ou não, e os que têm a ilusão de que estão seguindo um caminho só pensam assim porque estão parados? Não, melhor não responder nada. "Eu sei, mãe". "Ano que vem, mãe". "Pois é, mãe". "Bença, mãe".
Desligo o telefone depois de alguns minutos. Tanto eu quanto ela ficamos constrangidos. Raramente nos falamos, e essas conversas obrigatórias em datas especiais acabam sempre sendo cheias de lacunas, de pausas longas demais, de hesitações. Eu não queria que fosse assim, acho que ela também não. Mas não escolhemos isso. Assim como não escolhemos quase nada em nossas vidas. Temos isso em comum. Ergo a taça num brinde meio irônico à minha progenitora. Ê, mãe, olha só o que você foi botar no mundo!
E é isso o meu Natal. Beber um pouco, assistir a alguma bobagem na TV, ligar pra dois ou três amigos para falar bobagens e fingir que nã estou sozinho. Mas estou. E todos estão. Podem se cercar de centenas de pessoas, e gritar, e dançar, e beber até cair: Estão tão sós quanto eu, ou mais ainda, por não admitirem sua solidão. Um brinde a eles, os homens, meus irmãos!
E um brinde a você, Luiza. Sem taça, bebo a você no gargalo. Um brinde a você, que fez minha vida sair rodopiando por aí e depois cortou a corda, e a pobrezinha saiu pela tangente e está até agora tentando se recuperar da pancada. Bebo a você, Luiza, e a tudo de bom, e ruim, e estranho, e amargo, e desconcertante que você representa para este pobre homem, sozinho na penumbra de seu apartamento alugado em plena noite de Natal.

* * *


Acabei dormindo no sofá, ainda com a garrafa na mão. O telefone me acordou horas depois.
– Alô?
– Ô, rapaz! Feliz Natal!
– Obrigado, Baiano. Pra você também.
– Ouche, como sabe que sou eu?
– Ninguém mais tem esse sotaque de novela, Baiano.
– Sotaque de novela tem a tua mãe! Tá fazendo o quê aí?
– Bebendo o champanhe que você me deu e lamentando minha vida.
– Vixe, rapaz! Largue de viadagem e bora sair por aí!
– Sair pra onde?
– Ah, sei lá! Pega o violão aí e vamos fazer serenata!
– Serenata, Baiano? Pra quem é que a gente vai fazer serenata na noite de Natal, rapaz?
– Ah, eu tava aqui pensando. Tem um asilo ali perto de casa. Acho que os velhinhos iam gostar de uma serenata. Você podia tocar alguma coisa de Orlando Silva e tal...
– Que raio de idéia é essa, Baiano?
– Bora lá! Cê não tá fazendo nada aí, vai acabar a noite bêbado e chorando, pensando naquela moça. Te conheço! Que que custa sair um pouco, se divertir, alegrar um pouco a vida de uns cabras que já tão mais pra lá do que pra cá?
– Mas... Mas e se os caras lá do asilo chamarem a polícia?
– É bem capaz que chamem mesmo. E daí? Perturbação da ordem não dá cadeia. O que você me diz? Vamos ou não?
– É, tá bom. Vamos.
Nunca pensei que teria um Natal assim algum dia: Meio que encarapitado num muro, tocando violão e fazendo a segunda voz, enquanto o Baiano soltava seu vozeirão de barítono bêbado. Aos poucos algumas janelas do asilo foram se abrindo, e no final, quando tocamos Rosa, um pequeno côro de pequenas vozes cansadas nos acompanhou: "Tu és/Divina, graciosa/Estátua majestosa/Do amor/Por Deus esculturada...". É claro que depois disso uma funcionária veio nos pedir muito educadamente que nos retirássemos. Nada mal para quem esperava a polícia. E tenho a impressão de ter ouvido uns aplausos tímidos no final.
O Baiano me deixou em casa pelas quatro da manhã. Perguntou se eu não queria um pouco de erva, um presentinho de Natal. Não aceitei. Estava sentindo coisas bonitas cá dentro de mim, e queria me manter lúcido para saborear o momento.

17.12.02

"Ninguém pode explicar a vida
num samba curto"

(Num Samba Curto - Paulinho da Viola)

Não é Luiza. Luiza já faz tempo. Luiza nem dói mais, se eu não cutucar. Fica latejando, mas nada de insuportável, longe disso.
Também não é o japonês que se matou. Ele tomou sua decisão, planejou o que queria e seu plano foi bem-sucedido. Não fico triste por ele. Sequer penso nele, e só me lembrei ao começar a escrever.
Sou eu. Sou eu e essas músicas. Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Djavan, Gonzaguinha, Cazuza. Todos homens tristes que escreveram ou ainda escrevem seus versos tristes. E eu canto esses versos todos os dias, por profissão. Não há como não se deixar influenciar, por mais que eu tente. Associo trechos de músicas a cada acontecimento, por banal que seja, e essa é minha principal loucura. Quero escapar disso e não consigo. Agora mesmo que pensei nisso, e comecei a perceber o quanto isso atrapalha minha vida, o trecho de "Num Samba Curto" surgiu espontaneamente na minha cabeça, antes mesmo do raciocínio. Insuportável ironia.
Preciso fugir disso. Preciso impedir a erosão da minha sanidade. Um emprego. Um emprego normal, de acordar cedo e ir para um escritório, e fazer uma hora de almoço, e voltar para casa no fim da tarde. Mas o que é que eu sei fazer? Meus detratores dirão que não sei fazer nem o que deveria saber, que é tocar violão e cantar; e eu serei o primeiro a concordar. No entanto, sou uma espécie de autista, um deficiente cuja única capacidade é essa, de cantar mal e tocar pior. Para todas as outras coisas, sou um completo inútil.
Então continuo. Contra minha vontade, continuo. Entre uma música e outra, um pouco de álcool para enganar a mente. Entre o bar e o puteiro, mais uma mulher genérica e descartável, mais um enorme desperdício de tempo. Ok, gostei muito de ter te conhecido, mas eu andei pensando, acho melhor a gente parar antes que blablablá. Sempre o mesmo papo, e uma vontade imensa de dizer a verdade, "Você é chata", ou "Você beija mal", ou "Sua bunda é estranha", ou "Você é perfeita, mas não é Luiza". "Andei pensando" é o caralho, antes de embarcar em mais uma roubada dessas eu já sei que não vai dar em nada, e só levo adiante para comprovar minha incompetência.
São as músicas. Malditas músicas. E esse medo.

13.10.02

"Vou fechar o meu pranto
vou querer me matar."

(Travessia - Milton Nascimento)

A história toda já foi contada à exaustão. A imprensa deita e rola com casos assim. Então vou contar apenas o que vi, o resto já é notório.
Estava tocando "Meu Bem Querer" quando ele entrou no bar. Mal vestido, olhos injetados, cabelo desgrenhado. Ficou em pé entre duas mesas, olhando fixamente para mim. Seu olhar incomodava, primeiro pela insistência, e depois por me recordar algo. Eu tinha certeza de que o conhecia, mas não conseguia me lembrar de onde. Porém seu nome e sua história se acenderam como neon na minha cabeça quando terminei a música e ele pediu com voz cava:
-- Toca "Travessia".
Era ele. Por absurdo que parecesse, aquele homem excessivamente magro, pele esverdeada, cabelos já meio grisalhos era o outrora sorridente japonês, antigo freqüentador do bar que um dia resolvera matar a namorada. Desde o dia em que vira seu nome estampado no jornal, pensava cada vez menos no acontecido. Se me falassem dele há dois dias, levaria algum tempo para encontrá-lo no arquivo desorganizado da minha memória.
Mas agora não tinha como não pensar nele, parado ali, fugitivo da polícia, trêmulo, pedindo a mesma música daquela outra ocasião, a última vez em que o vira. Sua presença era um desafio, uma provocação. Parecia dizer: "Você acha que sua vida é trágica? Pois olhe bem para mim, veja o que é tragédia de verdade".
Sei que mesmo errando quase todos os acordes, comecei a tocar "Travessia". Quando cheguei ao trecho final, "Vou fechar o meu pranto/ vou querer me matar", o japonês saiu do bar. Segundos depois ouviu-se o estampido e todos correram para fora. Fui também, embora relutante. E lá estava ele, caído de bruços enquanto seu sangue se espalhava pela calçada.
O resto, como já disse, é notório; não vou me perder em detalhes. A imprensa apressou-se em condenar o estudante Marcelo H. por seu duplo gesto de desespero. Eu não: Acho que tenho uma idéia de como ele se sentia. Éramos como que irmãos, unidos por uma mesma dor. A diferença é que ele foi coerente com sua dor até o fim, enquanto eu tento inultimente fugir da minha. Marcelo H. é um herói trágico. Eu? Eu sou apenas patético.

1.10.02

"Malandragem, dá um tempo,
deixa essa pá de sujeira ir embora,
que é por isso que eu vou apertar
mas não vou acender agora."

(Malandragem Dá Um Tempo - Adelzonilton, Popular P & Moacyr Bombeiro)

Sozinho outra vez, e sem nada mais interessante para fazer, resolvi falar com o Baiano.
O Baiano é um dos últimos representantes de uma profissão quase extinta: o recepcionista de banheiro. É aquele cara que escova seu paletó, estende uma toalha de papel, oferece balas de hortelã "Para refrescar o hálito e agradar as senhoritas", e mantém uma mini-tabacaria. Acho que não existem muitos desses funcionários hoje em dia fora dos puteiros. Além desses serviços básicos, eles também indicam aos velhos freqüentadores as melhores opções da casa: A japonesinha recém-chegada, a ruiva que dá desconto (ou dá com desconto, para fazer um trocadilho infeliz), a mulata que faz tudo e mais um pouco.
A todas essas atividades, o Baiano ainda agrega a tarefa de fornecedor de maconha para os músicos. E só maconha, ele faz questão de deixar bem claro. Tive ocasião de ver um velho baterista expulso da boate aos pescoções após esgotar a paciência do Baiano com insistentes pedidos de pó. "Quer cheirar, vai cheirar lá na puta que o pariu, aqui não!".
Quem quiser erva, no entanto, é muito bem-vindo. Ele tem a fama de fornecer um bagulho de qualidade a preço justo. Diz que vem diretamente da plantação de um primo de Monte Santo, no sertão da Bahia. Ninguém sabe se a história do primo agricultor é verdadeira, mas todos passam para frente como se fosse. O único pedido que o Baiano faz é que ninguém fume na casa. "Compra aqui comigo; vai fumar na sua casa, na rua, na Catedral da Sé, onde quiser. Menos aqui.".
Eu, como todo mundo, estava cansado de saber dos serviços prestados pelo Baiano. Nunca me utilizara deles, porém: Meus tempos de comprar maconha ficaram lá longe, num ponto entre a adolescência e o início da vida adulta. Mesmo então, o consumo resumia-se a eventuais e desajeitadas tragadas num baseado, servindo mais como diversão para os outros maconheiros com meus acessos de tosse do que para dar barato propriamente.
E lá estava eu, séculos depois do fim da adolescência, pensando em como abordar o Baiano. Tremia tanto que parecia que estava prestes a negociar com algum chefão do tráfico num morro carioca, e não com o velho conhecido da noite. Para meu alívio, o Baiano percebeu minha tensão. A essa altura, eu já tinha entrado no banheiro, mijado e lavado as mãos duas vezes. Com um sorriso meio de lado, veio falar comigo.
-- E aí, meu velho? Interessado em alguma coisinha para logo mais?
-- Coisinha? É. Coisinha.
-- Deu sorte. Chegou uma morena hoje aí que eu vou te contar...
-- Não. Não. Baiano. A outra coisinha.
-- Ah, entendi! Quanto você quer, rapaz? Pode dizer, você sabe que aqui é coisa boa.
-- Sei lá. Cinqüenta gramas.
-- Cinqüenta???
-- É muito?
-- Ah, isso aí depende do freguês. Olha, não tenho aqui. Pega comigo amanhã?
-- Tudo bem. Deixo pago aqui?
-- Claro que não, rapaz. Só paga com a mercadoria na mão, que eu não quero te prejudicar.
Combinamos o preço e na noite seguinte entreguei o dinheiro e peguei a "mercadoria". Na hora entendi a razão do espando do Baiano: Para quem quer só fumar um baseado, cinqüenta gramas é muita maconha.
-- E aí, meu chefe? Sabe dechavar? Sabe bolar?
-- Hum... Sei não, Baiano.
-- Não esquente. Tenho aqui esse aparelhinho com pregos, olha só. Você bota o bagulho aqui dentro, gira de um lado pra outro, e sai fininho, uma beleza. E tem esse outro aqui, com a manivela. É só botar o fumo, a seda, girar a manivela, e tá pronto seu cigarrinho. Vai levar?
Ele fez um preço camarada no kit com o dechavador, o bolador e a seda. Deixei tudo lá com ele, peguei na saída e levei para casa. Cinqüenta gramas, puxa, eu ia defumar aquele apartamento.
Não foi tão bom quanto eu pensei que seria. Para falar a verdade, foi bem ruim. Preparar não foi o problema; depois de apanhar um pouco do tal aparelhinho com a manivela, acabei produzindo um cigarro mais ou menos convincente. Só que maconha é uma droga social, é estranho tragar a fumaça e não ter pra quem passar o baseado. Então fiquei lá, fumando e pensando, o que não é uma boa combinação. O bagulho ainda estava no meio e eu já estava chorando. A depressão bateu de uma forma inédita. Queria abrir a janela e gritar, mandar o mundo tomar bem no meio do cu, mas não tinha ânimo para levantar. Fiquei jogado no pufe, fumando, pensando, fumando, pensando, pensando, pensando. Ouvia a voz de Luiza como se ela estivesse ali do meu lado. Sabia que era só a lembrança da voz dela, que nunca saiu mesmo aqui de dentro. Mas com os sentidos alterados, parecia que vinha de fora, parecia que ela estava sentada no sofá falando bobagens engraçadas. Ou na cozinha, contando uma história comprida da qual eu pegava uma palavra ou outra. Ou então lá embaixo, na chuva, gritando que tinha voltado, que não dava pra viver sem mim. Nessa eu quase acreditei.
Lá pelas tantas bateu a larica. Reuni forças para me arrastar até a cozinha. Peguei uma cerveja na geladeira e botei um saco de pipocas no microondas. Me diverti um pouco com o barulho da pipoca estourando e a visão do saco de papel inflando. Terminei minha cerveja, peguei outra, botei a pipoca numa tijela e fui para a sala. Há algo de profundamente melancólico em comer pipoca sozinho, sem ter sequer um filme para assistir. Pensei em ligar a TV, mas senti que estava prestes a começar a chorar de novo, então resolvi que era hora de dormir. Dormir, esquecer.

26.9.02

"Eu não sei dançar
tão devagar
pra te acompanhar."

(Eu Não Sei Dançar - Alvin L)

E a escritora acabou não sendo tão interessante como eu pensei que seria. Pior: Sequer sofria tanto quanto seu choro convulsivo fazia parecer.
Naquela noite saímos do bar já era alta madrugada e fomos tomar café numa padaria próxima. Fui preparado para ouivr empolgantes desventuras contadas por alguém com grande talento para isso. Decepção total: Nenhum amor impossível, nem romance com final trágico, nem mesmo uma dor adormecida que resolvera despertar de repente. Nada além de trivialidades: Contas vencidas, uma briga com a mãe -- morava com os pais --, um ex-namorado que não largava do pé. Tudo narrado em exaustivos detalhes com uma fala atropelada e aguda. Parecia ser uma dessas pessoas que vivem dizendo "Minha vida daria um livro"; aí você lê umas páginas e é um puta livro chato. Só que pessoas assim são geralmente inofensivas: Esquecem logo esse negócio de livro e vão tocando a vida. Ela não: Tinha resolvido que sua vida daria mesmo um livro, e gastava seu tempo passando mediocridades para o papel -- pobre papael, inocente do que nele se escreve.
Não me entendam mal, não quero com isso dizer que acho chatos escritores autobiográficos. Pelo contrário: Um cara cujos livros tenho prazer imenso em ler e reler é o Charles Bukowski, autobiográfico que só ele. E tem essa menina nova aí, Clarah Averbuck. Li o livro dela, gostei muito. Não sei quanto do que ali está é real e quanto é ficção, mas fica bem claro que tem muito de vida real, o que só dá sabor ao texto.
Minha escritora, porém, era chata até o fundo da alma. Repetitiva, prolixa, lamentosa, um horror. Mas o que esperar? Aquela vidinha sem graça não tinha como fornecer muito material, o desastre era previsível.
E ela achava genial tudo o que escrevia. Enchia cadernos e mais cadernos com sua caligrafia infantil, narrando banalidades como se fossem acontecimentos da máxima importância, sem nem mesmo um traço de humor, nem raiva, nem sarcasmo, nem nada. "Memórias de uma autista" seria um ótimo título, tão gritante era a ausência de qualquer carga emocional genuína em toda aquela prolífica coleção de bobagens.
Sei que passei quase cinco semanas sofrendo a tortura de ler aquelas páginas intermináveis; e todo dia ela me trazia mais. Sentia-me como Judas Iscariotes no último dos círculos do inferno, tendo seu fígado continuamente regenerado, apenas para ser devorado com gosto pelo Diabo mais uma vez, e outra, e outra, e assim por toda a eternidade.
Ao contrário de Judas e o capeta, no entanto, eu não tinha a eternidade à minha disposição. A conversa foi tensa, porém breve: O problema não é com você, é comigo, estou confuso, preciso pensar, não quero magoar você, o texto padrão. Ela até reagiu bem: Chorou um pouco no começo, mas logo se recompôs.E, mais importante, saiu sem quebrar nada. O rompimento de relacionamentos breves chega quase a ser agradável.
Só o que ainda me aflige às vezes é a possibilidade de ter me tornado eu também personagem daquelas histórias medonhas. Deus, é constrangedor!

17.9.02

"Usou com força uma caneta azul
e as frases de caneta
você não pode apagar.
As lágrimas que caem
deixam mais azuis as letras
e os olhos não conseguem enxergar"

(Frases Mais Azuis - Nando Reis)

O negócio é que eu preciso trabalhar, por mais que doa a ausência de Luiza. Com tantas mudanças, é reconfortante ver que o bar e o puteiro continuam os mesmos, a não ser por alguns poucos novos freqüentadores. No bar, por exemplo, tem aparecido essa garota de duas semanas pra cá. Magra, longos cabelos loiros, usa óculos. Belos peitinhos. Senta-se num canto, tira um caderno da bolsa e começa a escrever. O caderno está surrado, e ela usa aquelas canetas Faber Castell de ponta fina, que eu nem sabia que ainda existiam. Chega sempre cedo, por volta das sete, e sai sempre antes da meia-noite. Toma água com gás, às vezes uma caipirinha. Escreve o tempo todo, quase sem levantar a cabeça. Quando o faz é para chamar o garçom ou então quando se levanta para ir ao banheiro. Às vezes olha não para mim, mas através de mim, como se quisesse captar de onde vem a música. Nunca aplaude, nunca pede uma música, apenas se senta lá no canto dela e escreve. E eu, que tantas vezes me ressinto dos que não me aplaudem, acho que não me sentiria bem se ela o fizesse. A arte que ela produz é tão superior ao arremedo de arte que produzo em cima daquele palco minúsculo, e com tão poucas oportunidades de aplauso, que seria constrangedor vê-la reconhecendo como valioso o que faço.
No último sábado, porém, ela saiu da rotina. Chegou bem mais tarde, por volta das dez. Sentou-se no lugar de sempre, tirou o caderno da bolsa e começou a arrancar e rasgar várias páginas. Depois apoiou os cotovelos na mesa, enfiou os dedos entre os cabelos e ficou lá, cabisbaixa, sem escrever nada. Parecia estar lendo e relendo uma das páginas seguidamente, como se quisesse decorá-la.
Chamei o garçom
-- Afonso, leva uma caipirinha praquela moça ali, a escritora.
-- Mas ela não bebe, Luis!
-- Vai por mim, ela tá precisando.
Afonso esticou o beiço, que é o jeito dele dizer "Então tá, não digo nada" e foi providenciar a bebida para a moça. Quando finalmente ele trouxe, por coincidência eu estava tocando "Olhos nos olhos", do Chico: "Olhos nos olhos/Quero ver o que você diz/Quero ver como suporta/me ver tão feliz". Ela olhou para mim, ergueu o copo num brinde à distância e sorriu. E que sorriso, meu Deus! Tão triste, mas tão lindo... Compartilhamos a mesma dor, eu sei disso. E lá vou eu me perder de novo.
”Hoje eu ouço as canções que você fez pra mim
Não sei por que razão tudo mudou assim
Ficaram as canções, mas você não ficou”

(As Canções Que Você Fez Pra Mim - Erasmo e Roberto Carlos)

De violão novo e aluguel pago, livre daquela maluca, pude me dar ao luxo de voltar a cutucar minhas feridas em paz. Hoje mesmo estava me lembrando de quando Luiza veio morar aqui. Nossa tentativa de montar uma banda de rock não tinha dado certo, mas estávamos juntos e só isso importava.
Foram dias lindos, aqueles primeiros morando juntos. Conversas madrugada adentro, sexo intenso, geniais piadas internas. E ela fazia músicas para mim. Pegava o violão, fazia os poucos acordes que conhecia com a mesma batida de sempre e improvisava letras absurdas falando de mim, de nós, do apartamento, da geladeira quebrada, do vazamento no banheiro, do canário que um dia foi embora.
No nosso primeiro Dia dos Namorados, ela se deu ao trabalho de imprimir essas letras com as cifras e encadernar. Foi um presente muito legal. Estava agora remexendo umas gavetas e encontrei o caderno. Mentira, não estava remexendo nada: Sei muito bem onde guardo o caderno, e sempre volto a ele quando quero sofrer um pouco mais do que de costume.
Não, eu não vou transcrever as letras aqui. São ridículas em sua maior parte, e só fazem sentido para mim mesmo. Só posso dizer que são lindas e despertam em mim sensações bonitas e estranhas.
Ah, Luiza. Aposto que você não sabia o que estava causando quando foi embora. Porque você é uma imbecil, Luiza. Você é uma imbecil.
”Me larga, não enche,
você não entende nada
e eu não vou te fazer entender.”

(Não enche - Caetano Veloso)

Nem o diabo entende as mulheres. Semanas depois de tudo acabado — minha vida já voltando aos eixos, tocando no bar e no puteiro, a ausência de Luiza consumindo às vezes todo o oxigênio do apartamento — E a Marininha resolve me telefonar:
— Oi.
— Oi. Quem é?
— Sou eu. Marina.
— Ah. Oi, Marina.
— Estava pensando em você, resolvi ligar.
— Ah, que legal.
(Agora já ligou. Tchau.)
— Tá tudo bem com você?
— Tudo beleza. E com você?
— Ai, mais ou menos. Saudade. Você me odeia?
— Imagina!
(Mas se você me comprar um violão novo eu agradeço, tocar esse Giannini barato está acabando com a minha reputação)
— A gente precisa conversar...
— Já estamos conversando, Marina.
(BOA!)
— Hum... E aí, como você está? Continua tocando?
— Sim. Olha, não posso ficar muito tempo no telefone. Cê ligou pra que mesmo?
— Puxa, não precisa ser agressivo.
— Agressivo? Eu? Não me lembro de ter tentado amassar o pandeiro na sua cabeça, ao contrário do que você fez com meu violão.
Como eu já esperava, começou a chorar. Perfeito, ótimo! Podem me acusar de bruto insensível, mas o choro feminino não me comove. E menos ainda quando acompanhado de balbucios lamentosos.
— Eu... Eu... Eu sei que eu fiz besteira. É que... Que eu sou muito ciumenta, sabe? Mas... Mas...
— Marina, preciso ir. Liga quando você estiver mais calma.
— Você precisa me escutar! — Passando do choro ao ódio — Tivemos uma história juntos, você não pode ignorar isso, não pode, não pode, não pode! Você não tem dignidade?
— Eu tinha, mas agora que sou obrigado a trabalhar um violãozinho vagabundo acho que minha dignidade já era.
— Ah, pra você é só isso que importa, não é? Sua vida, sua música, seu violão...
— Basicamente sim.
— Quanto valia aquela porcaria?
— Aquela porcaria era um Fender Clássico! Investi mil reais nele!
(Mentira. Oitocentos reais.)
— Então tá. Amanhã mesmo vou depositar mil e duzentos reais na sua conta. Está feliz agora?
— Ôpa! Muito.
— Eu te odeio, sabia?
E desligou na minha cara. Tudo bem: Três dias depois tirei o extrato da conta e havia um depósito de mil e duzentos reais. Comprei um Yamaha por seiscentos e paguei o aluguel atrasado com o resto do dinheiro. Ah, as mulheres...
"Foi um rio que passou em minha vida
e meu coração se deixou levar"

(Foi um rio que passou em minha vida - Paulinho da Viola)

Pensei que nunca mais fosse voltar a escrever aqui. Minha vida tomou um rumo tão inesperado nos últimos meses que eu cheguei a acreditar que enfim sairia da monotonia. Ilusão, claro.
A mudança começou numa noite de sexta-feira. Um casal de amigos meus veio ao bar com um monte de gente. Esse casal é legal – ele gosta um pouco demais de João Gilberto, isso a gente perdoa -- , mas aquele povo era muito barulhento, então fiquei olhando feio. E vi aquela mão. Delicada, dedos finos, unhas não muito compridas pintadas com esmalte escuro. Segurava uma lata de Coca-Cola Light, de vez em quando circulava o indicador lentamente pela borda da lata, pegava uma gotinha e levava à boca. Comecei a imaginar aquela mão fazendo coisas bem interessantes, e acho que até errei uma ou duas passagens de acorde no Apesar de Você. Fiz um esforço para obrigar meus olhos a se desgrudarem da mão, eles foram subindo pelo braço, ombro, pescoço e rosto. Bonita, a dona da mão. Muito bonita. Inventei um intervalo, apesar de só ter tocado três músicas até então, e fui cumprimentar meus amigos. Eles me apresentaram um por um da mesa, deixando-a por último. Marina. Marininha.
-- Prazer em conhecê-la, Marina.
-- Prazer meu. Eles falam muito de você, sabe?
-- Ah, é? Falam bem, espero. Bom, deixa eu voltar pra lá.
Voltei ao palco e toquei “Marina”, do Dorival Caymmi olhando pra ela. Começamos a sair. Uma semana depois, fiquei sabendo que ela detestava “Marina”, porque todo mundo cantava pra ela. Rimos muito disso, um bom começo. E duas semanas depois pegamos nossas tralhas e nos mudamos para Camburi, litoral norte de São Paulo. É, foi tudo bem rápido.
Em Camburi eu finalmente achei que havia encontrado meu lugar no mundo. Morava com uma mulher linda, que gostava das mesmas coisas que eu, que ia tocar comigo nos bares e o sexo era ótimo. Perfeito. Fazíamos cover de Belle & Sebastian, eu no violão, ela com o pandeiro meia-lua. E soava bem, porque a voz dela era idêntica à da Isobel Campbell, e eu faço uma imitação passável do Stuart Murdoch. E assim fomos vivendo.
Até aquela segunda-feira em que cheguei tarde em casa e ela quebrou o violão tentando me acertar. Tinha enfiado na cabeça que eu a traía, e naquele dia a neurose foi demais para mim. Deixei um bilhete -- Talvez seja hora de você partir para uma carreira solo. Boa sorte. -- E voltei para São Paulo, para o meu velho apartamento, para o bar de sempre, para o bordel e minhas amigas putas
"Não conheço seu nome ou paradeiro
Adivinho seu rastro e cheiro
Vou armado de dentes e coragem
Vou morder sua carne selvagem"

(Caçada - Chico Buarque)

Se há alguém que lê isto aqui, peço desculpas pelo longo tempo sem escrever nada. Ando meio esquisito e tenho uma preguiça danada de escrever. Mas hoje é segunda-feira, dia de folga, e não tenho desculpas. E vou contar como foi que começou o negócio com todo com Luiza.
Eu e um amigo resolvemos montar uma banda. Sim, banda de rock, minha vida não é só MPB, oras. Ele era (ainda é, acho) baterista e foi quem deu a idéia, dizendo que tinha uma amiga baixista. E quando, na semana seguinte, ele me apresentou Luiza, fiquei besta na hora. Linda que só ela, alta, aquele sorriso. E, vou te contar, que peitos!
Acho que ela também gostou de mim. Talvez tivéssemos começado nossa história por ali mesmo, se não fosse a infeliz idéia do meu amigo de contratar um guitarrista solo. Eu discordei, mas Luiza achou a idéia ótima (nada para ela era apenas bom, vim a saber mais tarde: tudo era "ótimo"). Guitarrista solo, coisa besta... Pra que eu ia querer um sujeito de calça justa e botinas apoiando o pé na caixa de retorno, virando o braço da guitarra pra lá e pra cá, entortando o pescoço e fazendo caretas horrendas? Isso não é música, é circo! Enfim, dois contra um, lá fram eles atrás de um guitarrista solo. E encontraram o Paulo, um cara magro demais, com olheiras que iam até o queixo.
Pronta a banda, mais ou menos definido o repertório, precisávamos ensaiar. Luiza, a mais sonhadora, propôs que alugássemos uma casa e fôssemos todos morar juntos. Acho que ela queria fazer alguma coisa no estilo dos Novos Baianos, mais que um grupo musical, uma comunidade. De uma forma ou de outra, o aluguel de uma casa com dois quartos dividido por quatro pessoas saía quase de graça, e nos mudamos todos para essa casa na Mooca, com um quintal razoável nos fundos e uma sala gigantesca, onde ensaiávamos. A casa seria perfeita, não fosse por um detalhe: tinha só dois quartos, e Luiza exigia ficar com um só para ela, porque era "a menina do grupo". Então ela dormia toda folgada no quarto menor enquanto eu, meu amigo e o Paulo nos ajeitávemos do jeito que dava no maior.
Tenho desde criança a mania de dormir sempre colado à parede. Não sei o porquê disso, talvez tivesse medo de cair da cama. Sei que foi a única exigência que fiz: Ficar com a cama do canto. Os outros deram de ombros. Fiquei feliz com essa pequena conquista, mas durou pouco o meu sossego.
Depois de uma semana morando juntos, eu e Luiza já havíamos desenvolvido uma afinidade muito grande. Eu me divertia muito com ela, e ela comigo. E, para minha maior alegria, ela compartilhava comigo da antipatia por Paulo, o guitarrista desnutrido. Tudo corria bem, até que uma noite Paulo se levantou de sua cama e saiu do quarto fazendo um claro esforço para não fazer barulho. Eu estava acordado e fiquei sem entender por um momento. Momento que durou pouco, porque logo comecei a ouvir os gemidos abafados de Luiza no quarto ao lado. Ouvia mais do que queria, na verdade, por causa dessa estúpida mania de dormir grudado à parede.
Foram séculos de gemidos, e poucos minutos depois que ela calou a boca (e sossegou a periquita), Paulo se esgueirou de volta para sua cama. Filho da puta! Aquilo começou a se repetir quase toda noite, para meu desespero. E o mais esquisito era que os dois mal se falavam durante o dia. Aparentemente, a antipatia de Luiza por ele continuava intocada. Mas os gemidos noturnos demonstravam outra coisa, uma simpatia exagerada até.
A tortura foi se prolongando até o dia em que Paulo resolveu sair da banda. Não estava se dando bem, nós não sabíamos reconhecer seu talento, ele queria vôos mais altos, etc. etc. etc... No mesmo dia ele arrumou suas coisas, pegou sua guitarra (uma guitarra cheia de frescuras) e foi embora. Para alegria minha, que poderia dormir em paz depois de tanto tempo.
Mas acontece que naquela noite eu não conseguia dormir. Ficava me revirando na cama, e meu amigo chegou a acender a luz para ver o que estava acontecendo. "Não é nada", garanti, e tentei parar quieto. Mas havia alguma coisa me incomodando, então me levantei e fui para o quarto de Luiza.
Ela também estava acordada. Claro, acostumada a trepar todo dia antes de dormir, devia estar em crise de abstinência. Estranhou minha visita àquela hora, mas não muito, porque instantes depois estávamos ambos nus, ofegantes, nossos corpos vibrando de desejo e...
E foi um desastre. Fiquei nervoso, acabou sendo tudo muito rápido, e mereci o olhar de complacência que ganhei em troca. Veio um silêncio meio constrangedor, mas aí aconteceu um negócio que eu acho que foi a causa de tudo o que veio depois: Começamos a rir, a rir de tudo, da situação, da minha entrada repentina no quarto, da minha absoluta incompetência. Depois disso ficamos conversando até o amanhecer, uma conversa cheia de ritmo e pausas nos lugares certos, parecendo uma coreografia de palavras. Antes de me levantar para voltar ao meu quarto, perguntei a ela o que vira em Paulo. "Ah, imaginei aqueles dedos ágeis e aí...". Foi demais para mim: Voltei para a cama, e dessa vez posso garantir que fiz tudo direitinho, o roteiro completo, e ainda com alguns brindes.
Guitarrista solo, bah!
"O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou"

(A Banda - Chico Buarque)

Vejam como são as coisas: Comecei a escrever isto aqui depois que Luiza me deixou, para poder ocupar minha mente. Queria contar minhas historinhas, só isso. Aí o desgraçado do japonês vai e mata a namorada. E depois eu começo a escrever justamente sobre quem? Sobre Luiza! Não é de se espantar, portanto, que meu projeto inicial, de escrever todos os dias, tenha sido frustrado. Mas tenho que continuar. Para minha sorte, ontem aconteceu um negócio estranho demais aqui no prédio, que passo a contar agora.
Bom, como já disse, acho que tenho idade para ser neto da maioria dos moradores. Mas não do Seu Afrânio: Acho que eu poderia passar tranqüilamente por bisneto dele. Seu Afrânio deve ter uns trezentos anos de idade. É muito sorridente e tem aqueles olhinhos brilhantes que só a absoluta senilidade proporciona. Sempre me cumprimenta efusivamente quando nos encontramos, tudo resultado de uma de suas loucuras passadas: Há cerca de três anos me ligou pedindo para ir ao seu apartamento. Estranhei, não freqüento meus vizinhos, pelas razõs óbvias e também pelo minha personalidade de bicho-do-mato. Mas seu Afrânio parecia excitado com alguma coisa, a curiosidade foi mais forte, e dez minutos depois eu estava sentado em seu sofá (tão velho quanto ele, parecia), esperando que ele me trouxesse "uma coisa" do quarto. Fiquei surpreso quando ele me trouxe um Tranquillo Giannini velho como o pecado e pediu que eu desse uma olhada. "Sabe como é, perdi a prática, não sei se afinei direito". Peguei o violão, e estava afinadíssimo. Disse isso a ele, que ficou muito satisfeito e começou a dedilhar. Porra, como vou descrever? Não sei direito o que era que ele estava tocando, não entendo de música clássica. Mas era lindo demais, suave demais. Acabei ficando a tarde inteira no apartamento dele, e aprendi muita coisa naquela tarde. No dia seguinte o encontrei no elevador e perguntei do violão. "Ah, meu filho, não toco há mais de trinta anos, nem me lembro!". Achei que estivesse brincando, mas não: Ele não se lembrava mesmo de ter tocado um dia antes. Desde então eu sempre pergunto do violão quando o encontro e ele só diz "Ah, quem sabe um dia eu volto a tocar". É caduquice, sim, mas acho que também tem um pouco de pudor nisso aí. Vai entender a cabeça de um velho maluco que fez o que fez ontem...
Deviam ser umas quatro da tarde. Fui acordado por uma algazarra lá embaixo. Abri a janela para ver o que era, e presenciei o melhor espetáculo gratuito da minha vida: Seu Afrânio andando pelo pátio com o ziper aberto, balanço o pinto e gritando "Já fui bom nisso! Já fui bom nisso!". As velhinhas, claro, horrorizadas, acabaram chamando a polícia, que chegou e acabou com a festa. Mas nem os policiais conseguiram ficar sérios diante da cena. Esse velho fraco aí dançou mesmo...
Ri muito na hora. Mas depois fiquei pensando: Seu Afrânio foi músico um dia. Deve ter conquistado mulheres em seu tempo fazendo serenatas.
Será que eu vou chegar nesse estado?
Ah, tomara!
"Escuta agora a canção que eu fiz pra te esquecer, Luiza"
(Luiza - Tom Jobim)

Antes de entrar no assunto, peço aos meus três leitores que me perdoem pelo abandono ao qual releguei este blog nos últimos dias. Tirei esse tempo todo de folga e fui para a praia com uns amigos. Estava precisando. Não que eu esteja em condições de abrir mão do dinheiro que receberia, mas vou me preocupar com isso depois.
Muito bem, muito bem. Luiza. Luiza foi embora há três semanas, e acho que sua partida causou, entre outras coisas, o nascimento deste blog. Foi o relacionamento mais longo dessa minha vida desregrada: oito meses, pouco mais, pouco menos, não me ligo muito em datas. Por que ela foi embora? Sei lá! Alguma coisa sobre eu gostar mais do violão do que dela. Tá bom, e qual a novidade?
Foi muito bom, muito mesmo, é por isso que estou esse bagaço agora. E foi rápido: nos conhecemos, duas semanas depois ela veio morar aqui, trazendo para este apartamento de solteirão um monte de cores novas, cheiros insuspeitados, sons estranhamente suaves. Preencheu todos os espaços, e agora que ela se foi isso aqui parece uma cidade fantasma. Nos primeiros dias eu evitava ficar aqui dentro, pensando que a presença de Luiza estava nas paredes, nos móveis, nos aparelhos. Mas demorou quase nada para eu perceber que é principalmente em mim que ela está, não tenho como fugir.
Para tornar tudo pior ainda, ela tinha que ter nome de música do Tom, só para me assombrar o tempo todo...
"Mandei fazer
de puro aço luminoso punhal
para matar o meu amor e matei
às cinco horas na avenida central"

(Panis et Circenses - Gilberto Gil e Caetano Veloso)

Não consigo esquecer esse troço, mas já tomei uma decisão: Não vou fazer nada. É, isso mesmo, não vou fazer nada. A menina já está morta, e dizer que eu vi o cara no bar horas depois do assassinato provavelmente não vai ajudar em nada. Tá, ele matou a moça e foi para o bar, e daí? Isso não dá nenhuma pista do paradeiro atual dele, que é o que interessa.
Mas tive pesadelos a noite toda sobre isso, sonhei com Luiza, sonhei com o japonês matando Luiza, sonhos horríveis, horríveis.
Quem é Luiza? Depois eu falo, agora estou cansado. Além de não ter dormido direito, ainda tive que ir até o Rio de Janeiro hoje resolver um negócio. Toda vez que eu vou ao Rio é assim, para voltar no mesmo dia. E o tempo sempre está nublado, o pessoal de lá diz que eu levo o mau tempo dentro da bolsa. Pura maledicência. Não entendo o Rio, nem os cariocas. Para vocês terem uma idéia, lá a gente tem que cumprimentar as mulheres com dois beijinhos no rosto. Pode??? Coisa de outro planeta mesmo...
Então por hoje é isso: Não vou fazer nada a respeito do caso do japonês e fica para amanhã falar sobre a Luiza.
"Eu te detesto e amo,
Morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo dessa vida"

(Canto Para a Minha Morte - Raul Seixas)

Puta que pariu! Eu vou contar e vocês por favor se sentem, porque tenho más notícias. Vocês leram os jornais recentemente?
Terça-feira é o dia que eu tiro para ler os jornais da semana. Vivo me esquecendo de cancelar a assinatura do jornal, então me obrigo a ler todas essas notícias velhas para fazer valer o dinheiro gasto.
Pois então, lendo o jornal de sexta-feira quase me dá um treco: estava lá a foto da loirinha, namorada do japonês, estampada na página policial. Eu acho que não a reconheceria sozinha, mas com o japonês ao lado tornava-se inconfundível. E lá vinha a notícia: "...Assassinada ontem por volta das oito da noite. O namorado, principal suspeito até agora, está foragido. Segundo a família, os dois haviam rompido o namoro menos de 24 horas antes".
Como é que pode??? Eu morrendo de pena do japonês, e é possível que ele tenha ido ao bar uma hora depois de matar a menina. O que eu faço agora? Procuro uma delegacia? Para falar o quê?
Desculpem, hoje não vai dar para escrever muito, nem entrar em detalhes da minha vida, como havia prometido. Já liguei para o puteiro para avisar que não vou tocar hoje. Preciso pensar no que fazer. Se é que há algo para ser feito. Merda!
"Vejo fulana a festejar na revista
Vejo beltrana a bordejar no pedaço
Divinais garotas
Belas donzelas no salão de beleza
Altas gazelas nos jardins do palácio
Eu sou mais as putas"

(Cambaio - Edu Lobo e Chico Buarque)

Segunda-feira, que beleza! Ah, não acha? Pois eu sim: é meu dia de folga. Domingo também, mas sempre tem algum bico para fazer aos domingos, e não estou em condições de respeitar dias santos. Mas a segunda-feira é totalmente dedicada ao ócio. É meio complicado, porque meus poucos amigos não se animam a fazer nada nesse dia da semana, então geralmente passo o dia todo em casa mesmo, ou andando pelo bairro e jogando conversa fora com os velhinhos (parece que todo mundo que passa dos 75 anos vem morar por aqui, é impressionante).
Pois então, domingos e segundas. E o que eu faço nos outros dias? De quinta a sábado toco naquele bar do qual já falei bastante. Às terças e quartas toco em outro lugar. Um lugar que... Como direi? Bom. Um rendez vous. É, isso aí, um lupanar. Um puteiro.
Não riam! Tá bom, vai. Riam. É meio esquisito mesmo. Músico de puteiro era tudo o que meus pais não queriam que eu fosse. Mas o mundo gira e gira, e quando a gente se dá conta já ficou tonto e está tocando guitarra num puteirinho dos mais fuleiros.
Que posso dizer em minha defesa? Primeiro o mais forte: Tom Jobim começou desse jeito, sabiam? Tocava em qualquer lugar, inclusive puteiros, para garantir o pagamento do aluguel. Mas o Tom sabia o que queria. Eu estou mais para aquele parceiro dele, o Newton Mendonça, e provavelmente morrerei cedo e anônimo, assim como ele. Acho que nem isso, porque ambos tinham em comum o talento extraordinário. Não tenho nada de extraordinário, a não ser, talvez, a absoluta falta de vergonha na cara.
Fora essa desculpinha de Tom Jobim -- que ninguém engole mesmo -- no bordel os recursos são bem melhores. Ou menos piores: toco minha guitarra ligada a uma mesa de dezesseis canais, o microfone é de qualidade razoável, tenho um baterista e um baixista que me acompanham (“me perseguem” seria mais apropriado) e, puxa!, até uma caixa de retorno. Não que o retorno seja uma boa coisa, é mais uma vingança do público: “"Ouve só o que a gente tem que agüentar”".
E tem mais uma vantagem: o público do puteiro é bem mais caloroso. Sou aplaudido sempre. As meninas pedem músicas, e adoram quando eu canto Geni e o Zepelim, do Chico Buarque.
Ah, as putas... Você, caro leitor, nunca pagou para fazer sexo? A não ser que você seja virgem, duvido muito. Toda mulher cobra por sexo, seja em dinheiro, seja em presentes, seja em poder. Sim, meu caro: poder sobre a sua vida. A única diferença entre as mulheres que você deve chamar de “decentes” ou qualquer outro adjetivo idiota desses, e as putas, é que estas chegaram a um tal patamar de pureza na vida que estipulam o preço antes de qualquer outra coisa. Jogo aberto, é disso que estou falando. E são grandes amigas, engraçadas, seguras de si, nada daquele nhenhenhém.
Pareço um tanto desiludido com o sexo oposto? É, acho que sou mesmo. E talvez eu conte a vocês a razão disso um dia. Ah, já contei até das minhas hemorróidas, não tenho mais pudores. Estejam por aqui amanhã, vamos ver se conseguimos ter uma conversa mais pessoal.