''Mas não tem nada não
tenho meu violão''

(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)

13.10.02

"Vou fechar o meu pranto
vou querer me matar."

(Travessia - Milton Nascimento)

A história toda já foi contada à exaustão. A imprensa deita e rola com casos assim. Então vou contar apenas o que vi, o resto já é notório.
Estava tocando "Meu Bem Querer" quando ele entrou no bar. Mal vestido, olhos injetados, cabelo desgrenhado. Ficou em pé entre duas mesas, olhando fixamente para mim. Seu olhar incomodava, primeiro pela insistência, e depois por me recordar algo. Eu tinha certeza de que o conhecia, mas não conseguia me lembrar de onde. Porém seu nome e sua história se acenderam como neon na minha cabeça quando terminei a música e ele pediu com voz cava:
-- Toca "Travessia".
Era ele. Por absurdo que parecesse, aquele homem excessivamente magro, pele esverdeada, cabelos já meio grisalhos era o outrora sorridente japonês, antigo freqüentador do bar que um dia resolvera matar a namorada. Desde o dia em que vira seu nome estampado no jornal, pensava cada vez menos no acontecido. Se me falassem dele há dois dias, levaria algum tempo para encontrá-lo no arquivo desorganizado da minha memória.
Mas agora não tinha como não pensar nele, parado ali, fugitivo da polícia, trêmulo, pedindo a mesma música daquela outra ocasião, a última vez em que o vira. Sua presença era um desafio, uma provocação. Parecia dizer: "Você acha que sua vida é trágica? Pois olhe bem para mim, veja o que é tragédia de verdade".
Sei que mesmo errando quase todos os acordes, comecei a tocar "Travessia". Quando cheguei ao trecho final, "Vou fechar o meu pranto/ vou querer me matar", o japonês saiu do bar. Segundos depois ouviu-se o estampido e todos correram para fora. Fui também, embora relutante. E lá estava ele, caído de bruços enquanto seu sangue se espalhava pela calçada.
O resto, como já disse, é notório; não vou me perder em detalhes. A imprensa apressou-se em condenar o estudante Marcelo H. por seu duplo gesto de desespero. Eu não: Acho que tenho uma idéia de como ele se sentia. Éramos como que irmãos, unidos por uma mesma dor. A diferença é que ele foi coerente com sua dor até o fim, enquanto eu tento inultimente fugir da minha. Marcelo H. é um herói trágico. Eu? Eu sou apenas patético.

1.10.02

"Malandragem, dá um tempo,
deixa essa pá de sujeira ir embora,
que é por isso que eu vou apertar
mas não vou acender agora."

(Malandragem Dá Um Tempo - Adelzonilton, Popular P & Moacyr Bombeiro)

Sozinho outra vez, e sem nada mais interessante para fazer, resolvi falar com o Baiano.
O Baiano é um dos últimos representantes de uma profissão quase extinta: o recepcionista de banheiro. É aquele cara que escova seu paletó, estende uma toalha de papel, oferece balas de hortelã "Para refrescar o hálito e agradar as senhoritas", e mantém uma mini-tabacaria. Acho que não existem muitos desses funcionários hoje em dia fora dos puteiros. Além desses serviços básicos, eles também indicam aos velhos freqüentadores as melhores opções da casa: A japonesinha recém-chegada, a ruiva que dá desconto (ou dá com desconto, para fazer um trocadilho infeliz), a mulata que faz tudo e mais um pouco.
A todas essas atividades, o Baiano ainda agrega a tarefa de fornecedor de maconha para os músicos. E só maconha, ele faz questão de deixar bem claro. Tive ocasião de ver um velho baterista expulso da boate aos pescoções após esgotar a paciência do Baiano com insistentes pedidos de pó. "Quer cheirar, vai cheirar lá na puta que o pariu, aqui não!".
Quem quiser erva, no entanto, é muito bem-vindo. Ele tem a fama de fornecer um bagulho de qualidade a preço justo. Diz que vem diretamente da plantação de um primo de Monte Santo, no sertão da Bahia. Ninguém sabe se a história do primo agricultor é verdadeira, mas todos passam para frente como se fosse. O único pedido que o Baiano faz é que ninguém fume na casa. "Compra aqui comigo; vai fumar na sua casa, na rua, na Catedral da Sé, onde quiser. Menos aqui.".
Eu, como todo mundo, estava cansado de saber dos serviços prestados pelo Baiano. Nunca me utilizara deles, porém: Meus tempos de comprar maconha ficaram lá longe, num ponto entre a adolescência e o início da vida adulta. Mesmo então, o consumo resumia-se a eventuais e desajeitadas tragadas num baseado, servindo mais como diversão para os outros maconheiros com meus acessos de tosse do que para dar barato propriamente.
E lá estava eu, séculos depois do fim da adolescência, pensando em como abordar o Baiano. Tremia tanto que parecia que estava prestes a negociar com algum chefão do tráfico num morro carioca, e não com o velho conhecido da noite. Para meu alívio, o Baiano percebeu minha tensão. A essa altura, eu já tinha entrado no banheiro, mijado e lavado as mãos duas vezes. Com um sorriso meio de lado, veio falar comigo.
-- E aí, meu velho? Interessado em alguma coisinha para logo mais?
-- Coisinha? É. Coisinha.
-- Deu sorte. Chegou uma morena hoje aí que eu vou te contar...
-- Não. Não. Baiano. A outra coisinha.
-- Ah, entendi! Quanto você quer, rapaz? Pode dizer, você sabe que aqui é coisa boa.
-- Sei lá. Cinqüenta gramas.
-- Cinqüenta???
-- É muito?
-- Ah, isso aí depende do freguês. Olha, não tenho aqui. Pega comigo amanhã?
-- Tudo bem. Deixo pago aqui?
-- Claro que não, rapaz. Só paga com a mercadoria na mão, que eu não quero te prejudicar.
Combinamos o preço e na noite seguinte entreguei o dinheiro e peguei a "mercadoria". Na hora entendi a razão do espando do Baiano: Para quem quer só fumar um baseado, cinqüenta gramas é muita maconha.
-- E aí, meu chefe? Sabe dechavar? Sabe bolar?
-- Hum... Sei não, Baiano.
-- Não esquente. Tenho aqui esse aparelhinho com pregos, olha só. Você bota o bagulho aqui dentro, gira de um lado pra outro, e sai fininho, uma beleza. E tem esse outro aqui, com a manivela. É só botar o fumo, a seda, girar a manivela, e tá pronto seu cigarrinho. Vai levar?
Ele fez um preço camarada no kit com o dechavador, o bolador e a seda. Deixei tudo lá com ele, peguei na saída e levei para casa. Cinqüenta gramas, puxa, eu ia defumar aquele apartamento.
Não foi tão bom quanto eu pensei que seria. Para falar a verdade, foi bem ruim. Preparar não foi o problema; depois de apanhar um pouco do tal aparelhinho com a manivela, acabei produzindo um cigarro mais ou menos convincente. Só que maconha é uma droga social, é estranho tragar a fumaça e não ter pra quem passar o baseado. Então fiquei lá, fumando e pensando, o que não é uma boa combinação. O bagulho ainda estava no meio e eu já estava chorando. A depressão bateu de uma forma inédita. Queria abrir a janela e gritar, mandar o mundo tomar bem no meio do cu, mas não tinha ânimo para levantar. Fiquei jogado no pufe, fumando, pensando, fumando, pensando, pensando, pensando. Ouvia a voz de Luiza como se ela estivesse ali do meu lado. Sabia que era só a lembrança da voz dela, que nunca saiu mesmo aqui de dentro. Mas com os sentidos alterados, parecia que vinha de fora, parecia que ela estava sentada no sofá falando bobagens engraçadas. Ou na cozinha, contando uma história comprida da qual eu pegava uma palavra ou outra. Ou então lá embaixo, na chuva, gritando que tinha voltado, que não dava pra viver sem mim. Nessa eu quase acreditei.
Lá pelas tantas bateu a larica. Reuni forças para me arrastar até a cozinha. Peguei uma cerveja na geladeira e botei um saco de pipocas no microondas. Me diverti um pouco com o barulho da pipoca estourando e a visão do saco de papel inflando. Terminei minha cerveja, peguei outra, botei a pipoca numa tijela e fui para a sala. Há algo de profundamente melancólico em comer pipoca sozinho, sem ter sequer um filme para assistir. Pensei em ligar a TV, mas senti que estava prestes a começar a chorar de novo, então resolvi que era hora de dormir. Dormir, esquecer.