''Mas não tem nada não
tenho meu violão''

(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)

26.12.02

"Danço eu, dança você
na dança da solidão"

(Dança da Solidão - Paulinho da Viola)

Noite de Natal em excelente companhia: Uma garrafa de champanhe francês, presente do Baiano. Bebo e tento não pensar que é Natal. Mas é inevitável, então deixo os pensamentos fluírem livremente. Penso com tristeza nos mortos, e com maior tristeza ainda nos vivos que foram embora por vontade própria, por força das circunstâncias ou expulsos por essa minha obssessão pelo isolamento.
Minha mãe ligou pouco depois da meia-noite para desejar um feliz Natal e me dar conselhos. Que eu deveria pensar mais na vida. Que eu bem que podia ter ido passar o Natal com a família. Que já passei dos trinta anos, não posso mais ter esse comportamento de adolescente sem rumo. E etcetera. O mesmo papo de todos os anos. Eu só dou respostas evasivas, ou então me calo. O que responderia? Que penso muito na vida, e que é isso que me afunda? Que passar o Natal com a família seria um inferno, com meu pai me olhando com o desprezo que tem por mim desde que decidi que viria para São Paulo viver de música ou de qualquer outra coisa, em vez de ser engenheiro como ele e toda a família? Que sem rumo estamos todos, adolescentes ou não, e os que têm a ilusão de que estão seguindo um caminho só pensam assim porque estão parados? Não, melhor não responder nada. "Eu sei, mãe". "Ano que vem, mãe". "Pois é, mãe". "Bença, mãe".
Desligo o telefone depois de alguns minutos. Tanto eu quanto ela ficamos constrangidos. Raramente nos falamos, e essas conversas obrigatórias em datas especiais acabam sempre sendo cheias de lacunas, de pausas longas demais, de hesitações. Eu não queria que fosse assim, acho que ela também não. Mas não escolhemos isso. Assim como não escolhemos quase nada em nossas vidas. Temos isso em comum. Ergo a taça num brinde meio irônico à minha progenitora. Ê, mãe, olha só o que você foi botar no mundo!
E é isso o meu Natal. Beber um pouco, assistir a alguma bobagem na TV, ligar pra dois ou três amigos para falar bobagens e fingir que nã estou sozinho. Mas estou. E todos estão. Podem se cercar de centenas de pessoas, e gritar, e dançar, e beber até cair: Estão tão sós quanto eu, ou mais ainda, por não admitirem sua solidão. Um brinde a eles, os homens, meus irmãos!
E um brinde a você, Luiza. Sem taça, bebo a você no gargalo. Um brinde a você, que fez minha vida sair rodopiando por aí e depois cortou a corda, e a pobrezinha saiu pela tangente e está até agora tentando se recuperar da pancada. Bebo a você, Luiza, e a tudo de bom, e ruim, e estranho, e amargo, e desconcertante que você representa para este pobre homem, sozinho na penumbra de seu apartamento alugado em plena noite de Natal.

* * *


Acabei dormindo no sofá, ainda com a garrafa na mão. O telefone me acordou horas depois.
– Alô?
– Ô, rapaz! Feliz Natal!
– Obrigado, Baiano. Pra você também.
– Ouche, como sabe que sou eu?
– Ninguém mais tem esse sotaque de novela, Baiano.
– Sotaque de novela tem a tua mãe! Tá fazendo o quê aí?
– Bebendo o champanhe que você me deu e lamentando minha vida.
– Vixe, rapaz! Largue de viadagem e bora sair por aí!
– Sair pra onde?
– Ah, sei lá! Pega o violão aí e vamos fazer serenata!
– Serenata, Baiano? Pra quem é que a gente vai fazer serenata na noite de Natal, rapaz?
– Ah, eu tava aqui pensando. Tem um asilo ali perto de casa. Acho que os velhinhos iam gostar de uma serenata. Você podia tocar alguma coisa de Orlando Silva e tal...
– Que raio de idéia é essa, Baiano?
– Bora lá! Cê não tá fazendo nada aí, vai acabar a noite bêbado e chorando, pensando naquela moça. Te conheço! Que que custa sair um pouco, se divertir, alegrar um pouco a vida de uns cabras que já tão mais pra lá do que pra cá?
– Mas... Mas e se os caras lá do asilo chamarem a polícia?
– É bem capaz que chamem mesmo. E daí? Perturbação da ordem não dá cadeia. O que você me diz? Vamos ou não?
– É, tá bom. Vamos.
Nunca pensei que teria um Natal assim algum dia: Meio que encarapitado num muro, tocando violão e fazendo a segunda voz, enquanto o Baiano soltava seu vozeirão de barítono bêbado. Aos poucos algumas janelas do asilo foram se abrindo, e no final, quando tocamos Rosa, um pequeno côro de pequenas vozes cansadas nos acompanhou: "Tu és/Divina, graciosa/Estátua majestosa/Do amor/Por Deus esculturada...". É claro que depois disso uma funcionária veio nos pedir muito educadamente que nos retirássemos. Nada mal para quem esperava a polícia. E tenho a impressão de ter ouvido uns aplausos tímidos no final.
O Baiano me deixou em casa pelas quatro da manhã. Perguntou se eu não queria um pouco de erva, um presentinho de Natal. Não aceitei. Estava sentindo coisas bonitas cá dentro de mim, e queria me manter lúcido para saborear o momento.

17.12.02

"Ninguém pode explicar a vida
num samba curto"

(Num Samba Curto - Paulinho da Viola)

Não é Luiza. Luiza já faz tempo. Luiza nem dói mais, se eu não cutucar. Fica latejando, mas nada de insuportável, longe disso.
Também não é o japonês que se matou. Ele tomou sua decisão, planejou o que queria e seu plano foi bem-sucedido. Não fico triste por ele. Sequer penso nele, e só me lembrei ao começar a escrever.
Sou eu. Sou eu e essas músicas. Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Djavan, Gonzaguinha, Cazuza. Todos homens tristes que escreveram ou ainda escrevem seus versos tristes. E eu canto esses versos todos os dias, por profissão. Não há como não se deixar influenciar, por mais que eu tente. Associo trechos de músicas a cada acontecimento, por banal que seja, e essa é minha principal loucura. Quero escapar disso e não consigo. Agora mesmo que pensei nisso, e comecei a perceber o quanto isso atrapalha minha vida, o trecho de "Num Samba Curto" surgiu espontaneamente na minha cabeça, antes mesmo do raciocínio. Insuportável ironia.
Preciso fugir disso. Preciso impedir a erosão da minha sanidade. Um emprego. Um emprego normal, de acordar cedo e ir para um escritório, e fazer uma hora de almoço, e voltar para casa no fim da tarde. Mas o que é que eu sei fazer? Meus detratores dirão que não sei fazer nem o que deveria saber, que é tocar violão e cantar; e eu serei o primeiro a concordar. No entanto, sou uma espécie de autista, um deficiente cuja única capacidade é essa, de cantar mal e tocar pior. Para todas as outras coisas, sou um completo inútil.
Então continuo. Contra minha vontade, continuo. Entre uma música e outra, um pouco de álcool para enganar a mente. Entre o bar e o puteiro, mais uma mulher genérica e descartável, mais um enorme desperdício de tempo. Ok, gostei muito de ter te conhecido, mas eu andei pensando, acho melhor a gente parar antes que blablablá. Sempre o mesmo papo, e uma vontade imensa de dizer a verdade, "Você é chata", ou "Você beija mal", ou "Sua bunda é estranha", ou "Você é perfeita, mas não é Luiza". "Andei pensando" é o caralho, antes de embarcar em mais uma roubada dessas eu já sei que não vai dar em nada, e só levo adiante para comprovar minha incompetência.
São as músicas. Malditas músicas. E esse medo.