''Mas não tem nada não
tenho meu violão''

(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)

17.11.03

"De que calada maneira
você chega assim sorrindo
(como se fosse a primavera
e eu morrendo)?
E de que modo sutil
me derramou na camisa
todas as flores de abril?"

(Como Se Fosse A Primavera - Chico Buarque/Pablo Milanés)

Meu negócio é mesmo tocar em bares. E agora isso nem me desagrada muito. Pelo contrário, nunca foi tão bom ser um mero menestrel de boteco. Já digo por quê.
O negócio lá da banda de formaturas não deu certo, graças a Deus. Como eu disse, era um troço meio constrangedor. Subíamos ao palco usando umas roupas horríveis, havia dançarinas e até mesmo nós, os músicos, éramos obrigados a participar de uma ou outra coreografia. Depois de umas duas ou três festas, fui falar com o Déo para pedir minha demissão. Expliquei, tentando não ofendê-lo, que tocar em formaturas não era minha idéia de trabalho. Ele relutou bastante mas acabou cedendo, e me pagou tudo conforme o combinado. Quis até me dar uma gratificação de vinte porcento, a qual não aceitei. Orgulho besta, aquela grana a mais daria uma boa ajuda agora que eu estava mais uma vez mergulhado na incerteza.
Não durou muito a incerteza, porém: uma semana depois do malfadado baile de formatura, recebi o telefonema do Rubão, baterista e velho companheiro de copo. O Rubão tinha sido convidado para tocar num bar do Tatuapé, mas como aparecer por lá só com bateria e voz seria um tanto estranho, lembrou-se de mim. Eu estaria interessado em tocar no tal bar, com chances de me tornar músico fixo? Oras, mas que pergunta! No dia seguinte, uma quinta-feira, eu já estava tocando por lá. No sábado o proprietário me veio com o contrato. Ia ganhar menos do que ganharia com a banda do Deoclécio e mais do que ganhava no bar anterior. Considerei isso um lucro e assinei sem discutir. Dava para o aluguel, a cerveja era por conta da casa, do que mais eu precisava?
Eu precisava de muito mais, essa é a verdade, e comecei a perceber isso ontem. Tinha acabo de tocar a já insuportável Flor de Lis, do Djavan, e tentava pescar entre os pedidos do público particularmente atencioso algo que eu soubesse tocar. Então eu a vi. Cabelos vermelhos seguros por duas presilhas na frente, muitas pulseiras, muito bonita e quieta no meio de um grupo barulhento. As pessoas à sua volta pediam "Travessia!", "A Banda!", teve até um que me lembrou o Sabichão, gritando "Chega de Saudade!" com força. No meio dessa balbúrdia, mais li seus lábios do que ouvi a garota de cabelos vermelhos dizer "Beatles", com um meio-sorriso encantador no rosto.
– Hein? Beatles?
– ...
– Você mesma – ficou vermelha, bom! –. Você pediu Beatles?
Ela só acenou que sim e eu comecei a tocar. Torceu o nariz para minha versão bossa-nova de Eleanor Rigby, mas notava-se que estava satisfeita por ter um pedido seu, que sequer fôra formulado direito, atendido tão prontamente. Quanto a mim, sentia-me encantado por ela, encantado de uma forma de que já nem me lembrava mais. Terminei a música e ainda tratei de estragar Ticket To Ride, para desespero da pobre garota. Depois resolvi fazer um intervalo e fui falar com ela. Não lembro direito o que dissemos, só me recordo de tê-la obrigado a me prometer que voltaria na semana seguinte. Ao fim da conversa eu tinha um nome e um número de telefone anotados na palma da mão e um sorriso bem bobo na cara. Voltei ao meu banquinho, esperei o Rubão voltar do banheiro e continuamos a tocar. No meio de Chega de Saudade (inevitável, há Sabichões adoradores de João Gilberto por toda parte), ela saiu. Uma pena.
Ao fim da noite peguei meu pagamento da semana no caixa e fui embora. Podia pegar uma lotação mas resolvi ir andando até o metrô. Segui pela Coelho Lisboa até a Praça Silvio Romero, onde alguns trabalhadores sonolentos já esperavam seus ônibus. Desci a Tuiuti e em cinco minutos estava no metrô Tatuapé. Uma senhora vendia doces e cigarros numa banquinha minúscula. Comprei um Diamante Negro, um Marlboro (sim, UM Marlboro, vinte centavos. Pra que comprar um maço se eu nem fumo mais?) e subi as escadas para a passarela do metrô. Acendi meu cigarro e fiquei lá contemplando os carros, ônibus e lotações que se arrastavam na direção do centro, como dinossauros cansados. Eu olhava para os carros, respirava a fumaça da cidade que acordava, olhava os prédios no horizonte, o concreto por todos os lados, e senti um repentino amor pela cidade. Terminei o cigarro, passei pela catraca e desci para a plataforma. Dentro do trem, interrompi a leitura de um bom Dostoiévski para contemplar as pessoas. Homens cansados logo cedo, mulheres que cabeceavam de sono. Homens que liam livros de marketing pessoal, mulheres que consumiam literatura esotérica. Office boys conversando em seu dialeto incompreensível da periferia. Senhoras evangélicas que rendiam louvores ao Senhor e citavam passagens da Bíblia entre um e outro comentário maldoso a respeito dos irmãos ou do pastor Fulano. Um senhor de terno surrado olhava sem disfarçar para o decote da moça entediada sentada à sua frente. Apenas pessoas, das mais vulgares, mas eu senti ondas de ternura por elas. Queria comentar Dostoiévski para ver se convertia os leitores de maus livros, tentar conversar com os boys, dizer às senhoras que pastor Fulano devia ter algo de bom, não é possível!, falar para o velho tarado tomar vergonha na cara (em tom jovial, é claro!), talvez até dar um jeito de ter acesso ao decote e a toda a moça ainda aquela noite.
Todo esse amor besta, essa ternurinha de folhetim, era culpa de uma só pessoa, é claro. A menina dos cabelos vermelhos me desarmou desse jeito esquisito, e agora eu sou um adolescente boboca e feliz. Conto os dias para o próximo sábado, quando a verei novamente. Estou ensaiando desde já um repertório razoável dos Beatles.
Luiza? Que Luiza?