''Mas não tem nada não
tenho meu violão''

(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)

16.1.03

"Eu vou desdizer
aquilo tudo que eu lhe disse antes"

(Metamorfose Ambulante - Raul Seixas)

Reconquistar Luiza. Será? Não sei... Passei tanto tempo endeusando Luiza, e quando nos reencontramos não foi nada do que eu esperava. Sim, foi bom, foi ótimo, mas não foi aquela revolução toda que eu esperava. Sexo razoavelmente agradável, com a mulher indo embora na manhã seguinte. Tudo o que um homem poderia querer. Senti uma certa exaltação durante aquela manhã, só pensava nela o tempo todo. Mas acho que era a fome: Depois do almoço, eu nem lembrava direito como tinha sido.
O fato é que Luiza é só uma garota. E existem muitas outras por aí. Mulheres até mais interessantes que ela, por mais que me doa admitir isso agora. Sábado, por exemplo. Estava tocando no bar quando entrou o Sabichão. Droga, achei que ele tivesse morrido. Mas lá estava ele, com algumas pessoas que eu nunca tinha visto (ele deve trocar de amigos de vez em quando. Ninguém o agüentaria por muito tempo). Sentaram-se numa mesa comprida e ele começou logo a fazer acordes com os dedos da mão esquerda pressionando cordas imaginárias no pulso direito. Coisa irritante. Pensei em chamá-lo para dar uma "canja" no palco, só para fazê-lo passar vergonha. Aposto meu violão como ele não toca nada. Mas achei melhor ignorá-lo. Só que ao final da música que estava tocando, notei que ele me olhava fixamente e preparava-se para dizer algo. Ele ia gritar "Toca Chega de Saudade!", e depois ficar babando o ovo do João Gilberto. Ia, claro que ia. O Sabichão nunca deixa de fazer isso, faz parte de seu roteiro. No entanto, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, uma das meninas que estava na mesa gritou para o palco, com um delicioso sotaque carioca:
– Toca o Bonde do Tigrão!
Todos no bar riram, com exceção de duas pessoas: O Sabichão, visivelmente contrariado pela invasão, e eu, que apenas olhei com admiração e gratidão para a garota, emendando em seguida uma tosca versão bossa-nova do Bonde do Tigrão. Por essa ela não esperava. Nem o Sabichão, que não deve ter gostado nada de ver um funk carioca tocado com a sacrossanta batida de seu deus e senhor João Gilberto. Ele ficou amuado o resto do tempo, olhando para dentro de sua caneca de chope, enquanto eu e a garota trocávamos olhares. No intervalo, fui falar com ela.
– E aí? Gostou da música?
– Gostei muito. Bom saber que você conhece os clássicos da MPB.
– Hehehe. Qual o seu nome?
– Não adianta. Não tenho nome de música.
(Hein?!)
– Perdão?
– Não se faça de bobo. Meu pai é músico, conheço as táticas de vocês. Se eu me chamasse Carolina, você ia voltar lá pro palco e cantar Carolina para mim. Mas como eu não tenho nome de música, você vai cantar alguma coisa genérica. Você é Linda ou Este Seu Olhar. E depois vai me chamar para sair. Certo?
– Hum. Bom... É, em linhas gerais é isso aí...
– Pois é.
– Pois é. Então. Preciso voltar lá.
– Ok. Se quiser tocar mais algum funk, eu agradeço.
– Tá bom.
Voltei para o meu canto, mas não toquei funk nenhum. Fiquei encucado com a carioca. Não estou acostumado com isso, mulheres me desafiando daquela maneira. Talvez por isso mesmo não ache nenhuma mulher interessante, e viva sofrendo com a lembrança de Luiza. Mas se existe uma mulher como aquela, devem existir outras. E se existem outras, ficar sofrendo por uma que está distante é um desperdício de tempo.
Na hora de ir, ela veio se despedir de mim.
– Desculpe se fui malcriada com você. É que sou assim às vezes, falo sem pensar e...
– Gostei do seu jeito. Você é uma boa menina. Mas e aí, não vai nem me dizer seu nom...
– Bianca! – O Sabichão gritou da porta do bar – Só estamos esperando você!
(Maldito...)
– Ok, já tô indo. Bom, agora você já sabe meu nome. Tchau.
– Tchau. Obrigado.
– Ué, obrigado por quê?
– Ah, nada. Deixa pra lá.
E lá se foi ela. Acho que não nos veremos de novo. Sequer trocamos números de telefone. Bom, talvez eu pergunte ao Sabichão da próxima vez em que ele vier. Sim, sou capaz de fazer esse sacrifício. Bianca... É, não conheço mesmo nenhuma música com esse título. Talvez eu tenha que compor.

6.1.03

"It's mightier than swords:
I could kill you, sure, but I could
Only make you cry with these words"

(Get Me Away From Here I'm Dying - Belle & Sebastian)

Passei a semana toda após o Natal pensando que nada superaria aquela noite fazendo serenata para os velhinhos no asilo. Ah, se eu soubesse o que o Ano Novo me reservava...
No dia 29 recebi o telefonema de um velho companheiro de trabalho. Um baterista que chegou a me acompanhar nos bons tempos em que o bar tinha palco e eu tinha dinheiro. Estava desesperado: Sua banda tinha sido contratada para tocar na virada do ano. Festa de uns bacanas em Osasco, boa grana, repertório fácil, bebida de graça. Só que o guitarrista e vocalista da banda tinha resolvido ter um ataque de vaidade no Natal e abandonara o barco, deixando a ele e o baixista de calças na mão. Bom, a história parecia comprida demais, então achei melhor ser direto:
– Quanto?
Ele me disse uma quantia razoável. Hum.
– E bebida à vontade?
– À vontade.
– Tô nessa. Mas precisamos ensaiar.
– Tudo bem. Não tem muito o que ensaiar, o repertório é aquele de sempre: Rock antigo, uma ou outra balada, umas coisinhas de MPB e samba que é mais sua praia. Cê tira de letra. E então, posso confirmar você?
– Pode sim.
– Que beleza! Agora só precisamos de uma guitarra solo.
– Hum...
– Quê?
(ODEIO guitarristas-solo!)
– Nada não. Té mais, Jaime.
– Té mais.
Tudo combinado, só precisamos ensaiar um pouco no dia seguinte. O Jaime é muito bom no que faz, o baixista era excelente. E até que o tal guitarrista-solo nem era tão intragável. Não ficava fazendo macaquices nem nada assim. No dia 31, peguei o Jaime na casa dele e fomos para a tal festa. Passamos o som rapidamente enquanto os primeiros convidados chegavam. Lá pelas tantas, casa lotada, começamos a tocar. Hotel California, para começar de um jeito bem óbvio. E depois teve de tudo: Pearl Jam, REM, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Frank Sinatra, Strokes. Tudo muito bom, tudo muito bem.
E aí veio a ruptura. Lembro a música, Não Chore Mais. Pra falar a verdade, lembro até o acorde que errei: Era pra tocar um dó maior. Mas aí eu vi Luiza entrando no salão e enfiei um ré menor que não tinha nada a ver com a música. A voz tentou acompanhar o acorde torto e senti o olhar de estranhamento dos outros músicos. Fiz um esforço enorme para voltar a me concentrar na música, e consegui terminá-la sem deslizes maiores que o leve tremor na voz. Era ela. Luiza. Meu Deus, era Luiza. De verdade, ali na minha frente. O cabelo estava diferente. Notei – com prazer indisfarçável – que ela estava mais gorda. Mas logo pensei que ela também devia ter percebido que eu estava mais pálido e que minhas olheiras quase ocupavam a cara toda, então achei melhor declarar empate.
Ela não deu mostras de ter ficado abalada ao me ver. E não demonstraria mesmo, essa é uma das coisas que admiro nela, essa presença de espírito. Olhou rapidamente para mim e depois foi sentar-se numa mureta no lado oposto do salão. Estava com um sujeito esquisito, branco demais, cabelo cuidadosamente penteado. Ele era um dos dois únicos homens da festa a usarem gravata. O outro era o baixista, mas neste a gravata era um acessório arrojado, enquanto a gravata do acompanhante de Luiza o fazia parecer um rábula interiorano.
Terminada a música, inventei um intervalo (adoro inventar intervalos), tomei uma dose de uísque puro para criar coragem e fui falar com o casal.
– Oi.
– Ah, você – gelo –. Tudo bem?
– Tudo.
Apresentou-me a ele como "um amigo"; e ele a mim como "meu namorado". Porra nenhuma! Podia ver que era só um casinho, que ela promovera a namorado de improviso só para esfregar na minha cara. Ficamos os três lá conversando por um tempo. Bom, não exatamente: Eu conversava com Luiza e às vezes ouvia uns chiados de interferência que identificava vagamente como tentativas de participação por parte do rapaz de gravata. Estávamos num momento particularmente agradável da conversa (falávamos sobre Jorge Ben, enquanto ele, queixo apoiado na mão, dava demonstrações inequívocas de tédio profundo), quando o pager dele soou escandalosamente.
– Putz, trabalho. Me dão licença? Preciso fazer uma ligação.
– À vontade.
Ele saiu em direção aos banheiros para poder usar o celular longe do barulho. Voltou todo atrapalhado, dizendo que precisaria ir ao escritório para resolver um problema. Caprichei na minha cara de "Oh, mas que pena!" e me despedi dele, compungido.
– Se der eu volto aqui – Ele avisou para Luiza, que não parecia tão ansiosa pela volta do "namorado". Eu poderia aproveitar a oportunidade, mas também estava trabalhando na noite de Ano Novo, então retornei ao palco e anunciei uma sessão "voz e violão", para surpresa dos outros músicos, que não esperavam descansar mais tempo ainda. Rebusquei a memória à procura dos acordes certos e comecei a tocar "Don't Leave The Light On, Baby" do Belle & Sebastian.
Semanas antes de ir embora, Luiza aparecera com um CD da banda escocesa, toda empolgada. Eu torci o nariz, como sempre faço diante de novidades. E reagi com minha costumeira delicadeza quando o CD ainda nem chegara à metade:
– Isso é música de veado.
Ela não disse nada: Tirou o CD e não se falou mais nisso. Quando partiu, o CD foi uma das coisas que deixou para trás. E não sei se virei veado ou não, mas o fato é que comecei a apreciar de verdade aquelas músicas de uma alegria melancólica (ou vice-versa). Tocar essas músicas era uma forma de pedir desculpas a ela, e caprichei. Ah, Luiza! Eu poderia matá-la, claro. Mas eu poderia apenas fazer você chorar com essas palavras. E foi o que aconteceu: Movida pela situação toda, e ajudada pelo champanhe, ela foi às lágrimas. Pobre menina, tão frágil.
Depois voltamos ao repertório programado. Às quatro da manhã, o almofadinha não havia voltado. Ofereci carona a Luíza, tudo aconteceu como era de se esperar e acordei pela primeira vez no novo ano com ela surpreendentemente ao meu lado. Sorrimos um para o outro, compreendendo a ironia. Claro que depois ela foi tomada de culpa, e me pediu para não procurá-la mais, que era melhor assim, que éramos melhores separados. Mas, coisa rara!, sinto-me otimista. Afinal de contas, hoje é um novo dia de um novo tempo etc. etc. etc. E anotei mentalmente minha única resolução de Ano Novo: Reconquistar Luiza.