''Mas não tem nada não
tenho meu violão''

(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)

6.1.03

"It's mightier than swords:
I could kill you, sure, but I could
Only make you cry with these words"

(Get Me Away From Here I'm Dying - Belle & Sebastian)

Passei a semana toda após o Natal pensando que nada superaria aquela noite fazendo serenata para os velhinhos no asilo. Ah, se eu soubesse o que o Ano Novo me reservava...
No dia 29 recebi o telefonema de um velho companheiro de trabalho. Um baterista que chegou a me acompanhar nos bons tempos em que o bar tinha palco e eu tinha dinheiro. Estava desesperado: Sua banda tinha sido contratada para tocar na virada do ano. Festa de uns bacanas em Osasco, boa grana, repertório fácil, bebida de graça. Só que o guitarrista e vocalista da banda tinha resolvido ter um ataque de vaidade no Natal e abandonara o barco, deixando a ele e o baixista de calças na mão. Bom, a história parecia comprida demais, então achei melhor ser direto:
– Quanto?
Ele me disse uma quantia razoável. Hum.
– E bebida à vontade?
– À vontade.
– Tô nessa. Mas precisamos ensaiar.
– Tudo bem. Não tem muito o que ensaiar, o repertório é aquele de sempre: Rock antigo, uma ou outra balada, umas coisinhas de MPB e samba que é mais sua praia. Cê tira de letra. E então, posso confirmar você?
– Pode sim.
– Que beleza! Agora só precisamos de uma guitarra solo.
– Hum...
– Quê?
(ODEIO guitarristas-solo!)
– Nada não. Té mais, Jaime.
– Té mais.
Tudo combinado, só precisamos ensaiar um pouco no dia seguinte. O Jaime é muito bom no que faz, o baixista era excelente. E até que o tal guitarrista-solo nem era tão intragável. Não ficava fazendo macaquices nem nada assim. No dia 31, peguei o Jaime na casa dele e fomos para a tal festa. Passamos o som rapidamente enquanto os primeiros convidados chegavam. Lá pelas tantas, casa lotada, começamos a tocar. Hotel California, para começar de um jeito bem óbvio. E depois teve de tudo: Pearl Jam, REM, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Frank Sinatra, Strokes. Tudo muito bom, tudo muito bem.
E aí veio a ruptura. Lembro a música, Não Chore Mais. Pra falar a verdade, lembro até o acorde que errei: Era pra tocar um dó maior. Mas aí eu vi Luiza entrando no salão e enfiei um ré menor que não tinha nada a ver com a música. A voz tentou acompanhar o acorde torto e senti o olhar de estranhamento dos outros músicos. Fiz um esforço enorme para voltar a me concentrar na música, e consegui terminá-la sem deslizes maiores que o leve tremor na voz. Era ela. Luiza. Meu Deus, era Luiza. De verdade, ali na minha frente. O cabelo estava diferente. Notei – com prazer indisfarçável – que ela estava mais gorda. Mas logo pensei que ela também devia ter percebido que eu estava mais pálido e que minhas olheiras quase ocupavam a cara toda, então achei melhor declarar empate.
Ela não deu mostras de ter ficado abalada ao me ver. E não demonstraria mesmo, essa é uma das coisas que admiro nela, essa presença de espírito. Olhou rapidamente para mim e depois foi sentar-se numa mureta no lado oposto do salão. Estava com um sujeito esquisito, branco demais, cabelo cuidadosamente penteado. Ele era um dos dois únicos homens da festa a usarem gravata. O outro era o baixista, mas neste a gravata era um acessório arrojado, enquanto a gravata do acompanhante de Luiza o fazia parecer um rábula interiorano.
Terminada a música, inventei um intervalo (adoro inventar intervalos), tomei uma dose de uísque puro para criar coragem e fui falar com o casal.
– Oi.
– Ah, você – gelo –. Tudo bem?
– Tudo.
Apresentou-me a ele como "um amigo"; e ele a mim como "meu namorado". Porra nenhuma! Podia ver que era só um casinho, que ela promovera a namorado de improviso só para esfregar na minha cara. Ficamos os três lá conversando por um tempo. Bom, não exatamente: Eu conversava com Luiza e às vezes ouvia uns chiados de interferência que identificava vagamente como tentativas de participação por parte do rapaz de gravata. Estávamos num momento particularmente agradável da conversa (falávamos sobre Jorge Ben, enquanto ele, queixo apoiado na mão, dava demonstrações inequívocas de tédio profundo), quando o pager dele soou escandalosamente.
– Putz, trabalho. Me dão licença? Preciso fazer uma ligação.
– À vontade.
Ele saiu em direção aos banheiros para poder usar o celular longe do barulho. Voltou todo atrapalhado, dizendo que precisaria ir ao escritório para resolver um problema. Caprichei na minha cara de "Oh, mas que pena!" e me despedi dele, compungido.
– Se der eu volto aqui – Ele avisou para Luiza, que não parecia tão ansiosa pela volta do "namorado". Eu poderia aproveitar a oportunidade, mas também estava trabalhando na noite de Ano Novo, então retornei ao palco e anunciei uma sessão "voz e violão", para surpresa dos outros músicos, que não esperavam descansar mais tempo ainda. Rebusquei a memória à procura dos acordes certos e comecei a tocar "Don't Leave The Light On, Baby" do Belle & Sebastian.
Semanas antes de ir embora, Luiza aparecera com um CD da banda escocesa, toda empolgada. Eu torci o nariz, como sempre faço diante de novidades. E reagi com minha costumeira delicadeza quando o CD ainda nem chegara à metade:
– Isso é música de veado.
Ela não disse nada: Tirou o CD e não se falou mais nisso. Quando partiu, o CD foi uma das coisas que deixou para trás. E não sei se virei veado ou não, mas o fato é que comecei a apreciar de verdade aquelas músicas de uma alegria melancólica (ou vice-versa). Tocar essas músicas era uma forma de pedir desculpas a ela, e caprichei. Ah, Luiza! Eu poderia matá-la, claro. Mas eu poderia apenas fazer você chorar com essas palavras. E foi o que aconteceu: Movida pela situação toda, e ajudada pelo champanhe, ela foi às lágrimas. Pobre menina, tão frágil.
Depois voltamos ao repertório programado. Às quatro da manhã, o almofadinha não havia voltado. Ofereci carona a Luíza, tudo aconteceu como era de se esperar e acordei pela primeira vez no novo ano com ela surpreendentemente ao meu lado. Sorrimos um para o outro, compreendendo a ironia. Claro que depois ela foi tomada de culpa, e me pediu para não procurá-la mais, que era melhor assim, que éramos melhores separados. Mas, coisa rara!, sinto-me otimista. Afinal de contas, hoje é um novo dia de um novo tempo etc. etc. etc. E anotei mentalmente minha única resolução de Ano Novo: Reconquistar Luiza.

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