''Mas não tem nada não
tenho meu violão''

(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)

18.6.03

"Jumento não é
Jumento não é
O grande malandro da praça
Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém
Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça
Mas quando a carcaça ameaça rachar
Que coices, que coices
Que coices que dá"

(O Jumento - Enriquez/Bardotti/Chico Buarque)

Muito bem, de volta à vida. Por onde andei esse tempo todo? Trabalhando num escritório! Sim, eu sei: inacreditável. Agora que acabou nem eu acredito que foi de verdade.
Um dia cheguei ao bar e o dono me chamou para conversar. Precisava cortar despesas. Estava tudo caro. Havia cada vez menos clientes. Tinha certeza que eu entenderia. Era doloroso pra ele. A ladainha de sempre.
– Então não vai mais ter música ao vivo no bar, Epa? – Epaminondas o nome dele, todos o chamam de Epa.
– Hum... Mais ou menos. Comprei uma jukebox.
Comecei a rir. Sempre ouvira falar desse medo que as pessoas têm de serem substituídas por máquinas e perderem seus empregos. Mas nunca cogitara nem de longe a hipótese de vir a acontecer comigo. Uma jukebox, quem diria! Bom, pelo menos o Sabichão teria seus pedidos sempre atendidos. Desde que tivesse dinheiro, claro.
– Então estou fora?
– Infelizmente. Mas não se preocupe! Você receberá todos os seus direitos!
"Todos os meus direitos" não era muito, uma vez que não era registrado. Uns caraminguás que mal davam para mês e meio. Comecei a procurar outros bares para tocar mas parecia que todos haviam comprado jukeboxes e não queriam mais saber de músicos. E como o dinheiro que ganhava no puteiro não dava nem pro aluguel, deixei meus pudores de lado e fui procurar emprego.
Não tinha qualificações, então tive que me contentar com um cargo de trainee do auxiliar do sub-alguma-coisa. O Baiano que me arrumou o emprego. Um primo em segundo grau cujo cunhado era dono da empresa, alguma coisa assim. Trabalho burocrático e chato, mas dinheirinho garantido todo mês. Fui ficando. O salário mais a mixaria que ganhava no bordéu me proporcionavam o suficiente para o aluguel, as contas e um cinema de vez em quando. Muito de vez em quando.
Já estava até me acostumando com a idéia de uma brilhante carreira no mundo das seguradoras de quinta categoria quando o negócio começou a degringolar: o cunhado do primo do Baiano começou a ter prejuízo e teve que demitir alguns funcionários, sendo três da minha área. E como não podia botar jukeboxes no lugar deles, acabou sobrando para mim. Trabalhava por quatro homens recebendo um salário de anão, se é que anão ganha proporcionalmente ao tamanho. Acho que não.
Aquilo foi me desgastando. Tinha que fazer hora extra todo dia, e no fim do mês as horas extras não eram pagas. "Depois você compensa", dizia o cunhado do etc., e nunca especificava quando seria esse "depois". Sem tempo nem para dar uma cochilada depois do trabalho, chegava em casa, tomava um banho e saía correndo pra ir tocar. Comecei a errar acordes com mais freqüência que o habitual, a trocar as letras das músicas. Não que alguém reparasse – num puteiro o músico é um homem invisível – mas aquilo estava mexendo com meus brios.
Um dia acordei com o toque estridente do rádio-relógio. Seis da manhã. Dei um tapa no aparelho maldito e voltei a dormir. Ele tocou novamente às seis e nove. Seis e nove. Por que esses rádio-relógios têm o intervalo programado para NOVE minutos? Por que não dez? O inventor do rádio-relógio tinha nove dedos? Comecei a pensar essas bobagens e percebi que estava me deixando cercar por essas coisas sem sentido: o rádio relógio, as pessoas que se empurravam feito gado no metrô, um trapo me apertando o pescoço, o paletó num país tropical. Olhei para o canto e lá estava meu violão velho de guerra.
Não precisei pensar muito: vesti uma calça jeans e uma camiseta, calcei um sapato velho, peguei o violão e repeti pela última vez a via-crúcis da minha casa até a Paulista. Não subi para o escritório, no entanto: Postei-me na calçada em frente ao prédio e comecei a tocar. As pessoas que iam chegando, muitas delas conhecidas, olhavam surpresas e divertidas para o ex-funcionário, agora metido a menestrel da metrópole. Meio de piada alguém jogou uma nota de um real na caixa do violão. Tive uma sensação de dejà-vu.
Quando meu gerente chegou e viu aquilo quase teve um troço.
– Rapaz, você quer perder seu emprego?
– Não há nada que eu queira mais no mundo, Seu Ferreira.
– Você é louco???
– Totalmente.
– Está na rua!
– Não, estou na calçada. Algum pedido, Seu Ferreira?
– VÁ PRO INFERNO!
– Ok. De que vale o céu azul/e o sol sempre a brilhar/se você não vem/e eu estou a te esperar...
Bufando de ódio, Seu Ferreira entrou no prédio.
No fim do dia, tendo arrecadado o dobro do que ganharia num dia de trabalho, subi para o escritório. Meu termo de rescisão estava pronto. Em seis meses eu era demitido pela segunda vez, mas agora estava feliz: pelo menos tinha meu FGTS pra gastar.
Desde então tenho tocado nas ruas e não posso reclamar: Ganho mais do que ganhava no bar antes. Consegui comprar um amplificador decente e um microfone, e espero já poder arrumar um percussionista no próximo mês. Continuo procurando emprego em bares, no entanto. Essa vida de músico mambembe é meio arriscada demais pro meu gosto. Se alguém aí souber de um bar que precise de um músico meia-boca mas de bom coração, por favor me diga.

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