"De que calada maneira
você chega assim sorrindo
(como se fosse a primavera
e eu morrendo)?
E de que modo sutil
me derramou na camisa
todas as flores de abril?"
(Como Se Fosse A Primavera - Chico Buarque/Pablo Milanés)
Meu negócio é mesmo tocar em bares. E agora isso nem me desagrada muito. Pelo contrário, nunca foi tão bom ser um mero menestrel de boteco. Já digo por quê.
O negócio lá da banda de formaturas não deu certo, graças a Deus. Como eu disse, era um troço meio constrangedor. Subíamos ao palco usando umas roupas horríveis, havia dançarinas e até mesmo nós, os músicos, éramos obrigados a participar de uma ou outra coreografia. Depois de umas duas ou três festas, fui falar com o Déo para pedir minha demissão. Expliquei, tentando não ofendê-lo, que tocar em formaturas não era minha idéia de trabalho. Ele relutou bastante mas acabou cedendo, e me pagou tudo conforme o combinado. Quis até me dar uma gratificação de vinte porcento, a qual não aceitei. Orgulho besta, aquela grana a mais daria uma boa ajuda agora que eu estava mais uma vez mergulhado na incerteza.
Não durou muito a incerteza, porém: uma semana depois do malfadado baile de formatura, recebi o telefonema do Rubão, baterista e velho companheiro de copo. O Rubão tinha sido convidado para tocar num bar do Tatuapé, mas como aparecer por lá só com bateria e voz seria um tanto estranho, lembrou-se de mim. Eu estaria interessado em tocar no tal bar, com chances de me tornar músico fixo? Oras, mas que pergunta! No dia seguinte, uma quinta-feira, eu já estava tocando por lá. No sábado o proprietário me veio com o contrato. Ia ganhar menos do que ganharia com a banda do Deoclécio e mais do que ganhava no bar anterior. Considerei isso um lucro e assinei sem discutir. Dava para o aluguel, a cerveja era por conta da casa, do que mais eu precisava?
Eu precisava de muito mais, essa é a verdade, e comecei a perceber isso ontem. Tinha acabo de tocar a já insuportável Flor de Lis, do Djavan, e tentava pescar entre os pedidos do público particularmente atencioso algo que eu soubesse tocar. Então eu a vi. Cabelos vermelhos seguros por duas presilhas na frente, muitas pulseiras, muito bonita e quieta no meio de um grupo barulhento. As pessoas à sua volta pediam "Travessia!", "A Banda!", teve até um que me lembrou o Sabichão, gritando "Chega de Saudade!" com força. No meio dessa balbúrdia, mais li seus lábios do que ouvi a garota de cabelos vermelhos dizer "Beatles", com um meio-sorriso encantador no rosto.
– Hein? Beatles?
– ...
– Você mesma – ficou vermelha, bom! –. Você pediu Beatles?
Ela só acenou que sim e eu comecei a tocar. Torceu o nariz para minha versão bossa-nova de Eleanor Rigby, mas notava-se que estava satisfeita por ter um pedido seu, que sequer fôra formulado direito, atendido tão prontamente. Quanto a mim, sentia-me encantado por ela, encantado de uma forma de que já nem me lembrava mais. Terminei a música e ainda tratei de estragar Ticket To Ride, para desespero da pobre garota. Depois resolvi fazer um intervalo e fui falar com ela. Não lembro direito o que dissemos, só me recordo de tê-la obrigado a me prometer que voltaria na semana seguinte. Ao fim da conversa eu tinha um nome e um número de telefone anotados na palma da mão e um sorriso bem bobo na cara. Voltei ao meu banquinho, esperei o Rubão voltar do banheiro e continuamos a tocar. No meio de Chega de Saudade (inevitável, há Sabichões adoradores de João Gilberto por toda parte), ela saiu. Uma pena.
Ao fim da noite peguei meu pagamento da semana no caixa e fui embora. Podia pegar uma lotação mas resolvi ir andando até o metrô. Segui pela Coelho Lisboa até a Praça Silvio Romero, onde alguns trabalhadores sonolentos já esperavam seus ônibus. Desci a Tuiuti e em cinco minutos estava no metrô Tatuapé. Uma senhora vendia doces e cigarros numa banquinha minúscula. Comprei um Diamante Negro, um Marlboro (sim, UM Marlboro, vinte centavos. Pra que comprar um maço se eu nem fumo mais?) e subi as escadas para a passarela do metrô. Acendi meu cigarro e fiquei lá contemplando os carros, ônibus e lotações que se arrastavam na direção do centro, como dinossauros cansados. Eu olhava para os carros, respirava a fumaça da cidade que acordava, olhava os prédios no horizonte, o concreto por todos os lados, e senti um repentino amor pela cidade. Terminei o cigarro, passei pela catraca e desci para a plataforma. Dentro do trem, interrompi a leitura de um bom Dostoiévski para contemplar as pessoas. Homens cansados logo cedo, mulheres que cabeceavam de sono. Homens que liam livros de marketing pessoal, mulheres que consumiam literatura esotérica. Office boys conversando em seu dialeto incompreensível da periferia. Senhoras evangélicas que rendiam louvores ao Senhor e citavam passagens da Bíblia entre um e outro comentário maldoso a respeito dos irmãos ou do pastor Fulano. Um senhor de terno surrado olhava sem disfarçar para o decote da moça entediada sentada à sua frente. Apenas pessoas, das mais vulgares, mas eu senti ondas de ternura por elas. Queria comentar Dostoiévski para ver se convertia os leitores de maus livros, tentar conversar com os boys, dizer às senhoras que pastor Fulano devia ter algo de bom, não é possível!, falar para o velho tarado tomar vergonha na cara (em tom jovial, é claro!), talvez até dar um jeito de ter acesso ao decote e a toda a moça ainda aquela noite.
Todo esse amor besta, essa ternurinha de folhetim, era culpa de uma só pessoa, é claro. A menina dos cabelos vermelhos me desarmou desse jeito esquisito, e agora eu sou um adolescente boboca e feliz. Conto os dias para o próximo sábado, quando a verei novamente. Estou ensaiando desde já um repertório razoável dos Beatles.
Luiza? Que Luiza?
Chicote Verbal
''Mas não tem nada não
tenho meu violão''
(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)
11/17/2003
10/01/2003
"We are the champions, my friend
And we'll keep on fighting 'til the end"
(We Are The Champions - Queen)
Como eu esperava, a vida de músico de rua não deu muito certo. Ora era alguém que vinha reclamar do barulho, ora era a polícia sem mais o que fazer, ora era algum fiscal da prefeitura querendo mostrar serviço. O dinheiro, que foi muito bom na primeira semana, foi escasseando. Era necessário procurar sempre novos lugares para tocar, o que não é nada fácil: é raro o canto de São Paulo que não conte com seu próprio menestrel. No fim das contas me enchi daquilo, vendi o amplificador e o microfone por um preço até maior do que esperava e fiquei dois meses só no puteiro mesmo. Quando o dinheiro acabou, vendi o computador para pagar mais um mês de aluguel. Ao que tudo parecia minha vida logo se tornaria bem sem graça. E foi aí que surgiu o Baiano, sempre ele:
- Rapaz, você não pode viver assim.
- Sei disso, Baiano. Mas tá difícil. Os poucos bares que ainda contratam músicos querem pagar quase nada. Tocar na rua é suicídio. Eu poderia procurar algo numa praça de alimentação de shopping center, mas isso eu deixo para quando não estiver mais nenhuma alternativa mesmo.
- Então eu tenho uma proposta para te fazer. Bom, eu não: o Deoclécio.
- Deoclécio?
- Meu irmão mais novo. Ele tem uma banda dessas que tocam em formaturas. Acontece que o baixista morreu num acidente e eles precisam de um substituto logo. Você toca baixo, não?
- Claro! Se eu tocar alto o povo vai embora.
- Continue na música, rapaz. Como humorista você tava era lascado...
- Hum. Bom, como eu faço para falar com seu irmão?
- Ah, amanhã tem ensaio da banda. Te dou o endereço e você vai lá.
No dia seguinte eu estava andando pelas ruas da Mooca procurando o endereço que o Baiano me passara. Demorei a encontrar; o bairro é cheio de ruas iguais. Depois de hora e meia andando, suado e já xingando o Baiano, o Deoclécio e toda a população de Monte Santo, finalmente encontrei a casinha acanhada do baterista. Mal toquei a campainha e a porta se abriu. Ao que parecia, estavam me esperando: os membros da banda estavam todos na sala, sentados no sofá esgarçado ou espalhados pelo chão. O que abrira era Gilberto, o dono da casa.
- Você é o Luís, o tal baixista de que o Dionísio falou?
- Sou sim.
- Bom. Aquele ali de óculos é Alexandre, o guitarrista. Do lado dele está Maurício, o tecladista. Os dois no sofá são o guitarrista-solo e o percussionista, Edu e Cabeça. E as duas beldades - apontou para duas gordinhas - são Alice e Shirley, que fazem o backing vocal.
- Prazer em conhecê-los - eu disse timidamente, e todos acenaram de forma vaga. Exceto o Cabeça, um preto de quase dois metros de altura, que teve a gentileza de levantar-se para me cumprimentar. - E o Deoclécio?
- Ah é. DÉO! Ô DÉO!
- Já vou! - uma voz irritada e um tanto aguda.
- Ele já vem.
Ouviu-se uma descarga, barulho de torneira. Então uma porta do corredor se abriu e de dentro do banheiro saiu um homem de cerca de 35 anos, magro demais e enfiado numa calça de couro, sem camisa. Tinha um lenço no pescoço, andava com as pernas muito juntas e os braços colados ao corpo. Uma bicha quase caricata.
- Olá. Eu sou o Deoclécio. O Nísio fala muito bem de você, rapaz. E então, pronto para embarcar em nossa pequena aventura? - ele falava assim mesmo, e olhando por cima do meu ombro, como se estivesse lendo seu texto num teleprompter logo atrás de mim.
- Claro, Claro.
- Excelente! Então vamos ensaiar!
Fomos para um quintal tímido nos fundos da casa. O equipamento dos caras era impressionante, altíssima tecnologia contrastando com a decadência geral do cenário. O instrumento do falecido baixista era um Warwick de 5 cordas lindíssimo.
- Bom, Luís. Essa pasta aí tem as músicas que tocamos. Nada de muito complicado: Queen, Pink Floyd, alguma coisa de Beatles, um axé aqui e ali, um quase nada de MPB, um pouco de samba, enfim, música de formatura. Vamos ver como você se sai.
Tocamos por cerca de duas horas um repertório dos mais ecléticos. Nas três ou quatro primeiras músicas eu ainda estava travado: há muito tempo não pegava num contrabaixo, e nunca havia tocado a sério um de cinco cordas. Mas pelo jeito o Deoclécio gostou do meu trabalho, porque ao fim do ensaio eu estava contratado.
- Muito bem, rapaz. Pode levar o baixo e o amplificador com você. Vai estudando, que temos uma formatura para fazer daqui a dez dias.
- Obrigado, Deocléio.
- De nada. E... Luís?
- Sim?
- Me chame de Déo, ok? Apenas Déo.
- Tudo bem. Déo.
- Melhor assim.
Voltei para casa de táxi com meu novo instrumento de trabalho e já estou ensaiando o repertório da banda há três dias. Tenho que estar afiado para a primeira apresentação. E torcer para que nenhum amigo me veja no palco. É meio constrangedor tocar em formaturas.
And we'll keep on fighting 'til the end"
(We Are The Champions - Queen)
Como eu esperava, a vida de músico de rua não deu muito certo. Ora era alguém que vinha reclamar do barulho, ora era a polícia sem mais o que fazer, ora era algum fiscal da prefeitura querendo mostrar serviço. O dinheiro, que foi muito bom na primeira semana, foi escasseando. Era necessário procurar sempre novos lugares para tocar, o que não é nada fácil: é raro o canto de São Paulo que não conte com seu próprio menestrel. No fim das contas me enchi daquilo, vendi o amplificador e o microfone por um preço até maior do que esperava e fiquei dois meses só no puteiro mesmo. Quando o dinheiro acabou, vendi o computador para pagar mais um mês de aluguel. Ao que tudo parecia minha vida logo se tornaria bem sem graça. E foi aí que surgiu o Baiano, sempre ele:
- Rapaz, você não pode viver assim.
- Sei disso, Baiano. Mas tá difícil. Os poucos bares que ainda contratam músicos querem pagar quase nada. Tocar na rua é suicídio. Eu poderia procurar algo numa praça de alimentação de shopping center, mas isso eu deixo para quando não estiver mais nenhuma alternativa mesmo.
- Então eu tenho uma proposta para te fazer. Bom, eu não: o Deoclécio.
- Deoclécio?
- Meu irmão mais novo. Ele tem uma banda dessas que tocam em formaturas. Acontece que o baixista morreu num acidente e eles precisam de um substituto logo. Você toca baixo, não?
- Claro! Se eu tocar alto o povo vai embora.
- Continue na música, rapaz. Como humorista você tava era lascado...
- Hum. Bom, como eu faço para falar com seu irmão?
- Ah, amanhã tem ensaio da banda. Te dou o endereço e você vai lá.
No dia seguinte eu estava andando pelas ruas da Mooca procurando o endereço que o Baiano me passara. Demorei a encontrar; o bairro é cheio de ruas iguais. Depois de hora e meia andando, suado e já xingando o Baiano, o Deoclécio e toda a população de Monte Santo, finalmente encontrei a casinha acanhada do baterista. Mal toquei a campainha e a porta se abriu. Ao que parecia, estavam me esperando: os membros da banda estavam todos na sala, sentados no sofá esgarçado ou espalhados pelo chão. O que abrira era Gilberto, o dono da casa.
- Você é o Luís, o tal baixista de que o Dionísio falou?
- Sou sim.
- Bom. Aquele ali de óculos é Alexandre, o guitarrista. Do lado dele está Maurício, o tecladista. Os dois no sofá são o guitarrista-solo e o percussionista, Edu e Cabeça. E as duas beldades - apontou para duas gordinhas - são Alice e Shirley, que fazem o backing vocal.
- Prazer em conhecê-los - eu disse timidamente, e todos acenaram de forma vaga. Exceto o Cabeça, um preto de quase dois metros de altura, que teve a gentileza de levantar-se para me cumprimentar. - E o Deoclécio?
- Ah é. DÉO! Ô DÉO!
- Já vou! - uma voz irritada e um tanto aguda.
- Ele já vem.
Ouviu-se uma descarga, barulho de torneira. Então uma porta do corredor se abriu e de dentro do banheiro saiu um homem de cerca de 35 anos, magro demais e enfiado numa calça de couro, sem camisa. Tinha um lenço no pescoço, andava com as pernas muito juntas e os braços colados ao corpo. Uma bicha quase caricata.
- Olá. Eu sou o Deoclécio. O Nísio fala muito bem de você, rapaz. E então, pronto para embarcar em nossa pequena aventura? - ele falava assim mesmo, e olhando por cima do meu ombro, como se estivesse lendo seu texto num teleprompter logo atrás de mim.
- Claro, Claro.
- Excelente! Então vamos ensaiar!
Fomos para um quintal tímido nos fundos da casa. O equipamento dos caras era impressionante, altíssima tecnologia contrastando com a decadência geral do cenário. O instrumento do falecido baixista era um Warwick de 5 cordas lindíssimo.
- Bom, Luís. Essa pasta aí tem as músicas que tocamos. Nada de muito complicado: Queen, Pink Floyd, alguma coisa de Beatles, um axé aqui e ali, um quase nada de MPB, um pouco de samba, enfim, música de formatura. Vamos ver como você se sai.
Tocamos por cerca de duas horas um repertório dos mais ecléticos. Nas três ou quatro primeiras músicas eu ainda estava travado: há muito tempo não pegava num contrabaixo, e nunca havia tocado a sério um de cinco cordas. Mas pelo jeito o Deoclécio gostou do meu trabalho, porque ao fim do ensaio eu estava contratado.
- Muito bem, rapaz. Pode levar o baixo e o amplificador com você. Vai estudando, que temos uma formatura para fazer daqui a dez dias.
- Obrigado, Deocléio.
- De nada. E... Luís?
- Sim?
- Me chame de Déo, ok? Apenas Déo.
- Tudo bem. Déo.
- Melhor assim.
Voltei para casa de táxi com meu novo instrumento de trabalho e já estou ensaiando o repertório da banda há três dias. Tenho que estar afiado para a primeira apresentação. E torcer para que nenhum amigo me veja no palco. É meio constrangedor tocar em formaturas.
6/18/2003
"Jumento não é
Jumento não é
O grande malandro da praça
Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém
Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça
Mas quando a carcaça ameaça rachar
Que coices, que coices
Que coices que dá"
(O Jumento - Enriquez/Bardotti/Chico Buarque)
Muito bem, de volta à vida. Por onde andei esse tempo todo? Trabalhando num escritório! Sim, eu sei: inacreditável. Agora que acabou nem eu acredito que foi de verdade.
Um dia cheguei ao bar e o dono me chamou para conversar. Precisava cortar despesas. Estava tudo caro. Havia cada vez menos clientes. Tinha certeza que eu entenderia. Era doloroso pra ele. A ladainha de sempre.
– Então não vai mais ter música ao vivo no bar, Epa? – Epaminondas o nome dele, todos o chamam de Epa.
– Hum... Mais ou menos. Comprei uma jukebox.
Comecei a rir. Sempre ouvira falar desse medo que as pessoas têm de serem substituídas por máquinas e perderem seus empregos. Mas nunca cogitara nem de longe a hipótese de vir a acontecer comigo. Uma jukebox, quem diria! Bom, pelo menos o Sabichão teria seus pedidos sempre atendidos. Desde que tivesse dinheiro, claro.
– Então estou fora?
– Infelizmente. Mas não se preocupe! Você receberá todos os seus direitos!
"Todos os meus direitos" não era muito, uma vez que não era registrado. Uns caraminguás que mal davam para mês e meio. Comecei a procurar outros bares para tocar mas parecia que todos haviam comprado jukeboxes e não queriam mais saber de músicos. E como o dinheiro que ganhava no puteiro não dava nem pro aluguel, deixei meus pudores de lado e fui procurar emprego.
Não tinha qualificações, então tive que me contentar com um cargo de trainee do auxiliar do sub-alguma-coisa. O Baiano que me arrumou o emprego. Um primo em segundo grau cujo cunhado era dono da empresa, alguma coisa assim. Trabalho burocrático e chato, mas dinheirinho garantido todo mês. Fui ficando. O salário mais a mixaria que ganhava no bordéu me proporcionavam o suficiente para o aluguel, as contas e um cinema de vez em quando. Muito de vez em quando.
Já estava até me acostumando com a idéia de uma brilhante carreira no mundo das seguradoras de quinta categoria quando o negócio começou a degringolar: o cunhado do primo do Baiano começou a ter prejuízo e teve que demitir alguns funcionários, sendo três da minha área. E como não podia botar jukeboxes no lugar deles, acabou sobrando para mim. Trabalhava por quatro homens recebendo um salário de anão, se é que anão ganha proporcionalmente ao tamanho. Acho que não.
Aquilo foi me desgastando. Tinha que fazer hora extra todo dia, e no fim do mês as horas extras não eram pagas. "Depois você compensa", dizia o cunhado do etc., e nunca especificava quando seria esse "depois". Sem tempo nem para dar uma cochilada depois do trabalho, chegava em casa, tomava um banho e saía correndo pra ir tocar. Comecei a errar acordes com mais freqüência que o habitual, a trocar as letras das músicas. Não que alguém reparasse – num puteiro o músico é um homem invisível – mas aquilo estava mexendo com meus brios.
Um dia acordei com o toque estridente do rádio-relógio. Seis da manhã. Dei um tapa no aparelho maldito e voltei a dormir. Ele tocou novamente às seis e nove. Seis e nove. Por que esses rádio-relógios têm o intervalo programado para NOVE minutos? Por que não dez? O inventor do rádio-relógio tinha nove dedos? Comecei a pensar essas bobagens e percebi que estava me deixando cercar por essas coisas sem sentido: o rádio relógio, as pessoas que se empurravam feito gado no metrô, um trapo me apertando o pescoço, o paletó num país tropical. Olhei para o canto e lá estava meu violão velho de guerra.
Não precisei pensar muito: vesti uma calça jeans e uma camiseta, calcei um sapato velho, peguei o violão e repeti pela última vez a via-crúcis da minha casa até a Paulista. Não subi para o escritório, no entanto: Postei-me na calçada em frente ao prédio e comecei a tocar. As pessoas que iam chegando, muitas delas conhecidas, olhavam surpresas e divertidas para o ex-funcionário, agora metido a menestrel da metrópole. Meio de piada alguém jogou uma nota de um real na caixa do violão. Tive uma sensação de dejà-vu.
Quando meu gerente chegou e viu aquilo quase teve um troço.
– Rapaz, você quer perder seu emprego?
– Não há nada que eu queira mais no mundo, Seu Ferreira.
– Você é louco???
– Totalmente.
– Está na rua!
– Não, estou na calçada. Algum pedido, Seu Ferreira?
– VÁ PRO INFERNO!
– Ok. De que vale o céu azul/e o sol sempre a brilhar/se você não vem/e eu estou a te esperar...
Bufando de ódio, Seu Ferreira entrou no prédio.
No fim do dia, tendo arrecadado o dobro do que ganharia num dia de trabalho, subi para o escritório. Meu termo de rescisão estava pronto. Em seis meses eu era demitido pela segunda vez, mas agora estava feliz: pelo menos tinha meu FGTS pra gastar.
Desde então tenho tocado nas ruas e não posso reclamar: Ganho mais do que ganhava no bar antes. Consegui comprar um amplificador decente e um microfone, e espero já poder arrumar um percussionista no próximo mês. Continuo procurando emprego em bares, no entanto. Essa vida de músico mambembe é meio arriscada demais pro meu gosto. Se alguém aí souber de um bar que precise de um músico meia-boca mas de bom coração, por favor me diga.
Jumento não é
O grande malandro da praça
Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém
Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça
Mas quando a carcaça ameaça rachar
Que coices, que coices
Que coices que dá"
(O Jumento - Enriquez/Bardotti/Chico Buarque)
Muito bem, de volta à vida. Por onde andei esse tempo todo? Trabalhando num escritório! Sim, eu sei: inacreditável. Agora que acabou nem eu acredito que foi de verdade.
Um dia cheguei ao bar e o dono me chamou para conversar. Precisava cortar despesas. Estava tudo caro. Havia cada vez menos clientes. Tinha certeza que eu entenderia. Era doloroso pra ele. A ladainha de sempre.
– Então não vai mais ter música ao vivo no bar, Epa? – Epaminondas o nome dele, todos o chamam de Epa.
– Hum... Mais ou menos. Comprei uma jukebox.
Comecei a rir. Sempre ouvira falar desse medo que as pessoas têm de serem substituídas por máquinas e perderem seus empregos. Mas nunca cogitara nem de longe a hipótese de vir a acontecer comigo. Uma jukebox, quem diria! Bom, pelo menos o Sabichão teria seus pedidos sempre atendidos. Desde que tivesse dinheiro, claro.
– Então estou fora?
– Infelizmente. Mas não se preocupe! Você receberá todos os seus direitos!
"Todos os meus direitos" não era muito, uma vez que não era registrado. Uns caraminguás que mal davam para mês e meio. Comecei a procurar outros bares para tocar mas parecia que todos haviam comprado jukeboxes e não queriam mais saber de músicos. E como o dinheiro que ganhava no puteiro não dava nem pro aluguel, deixei meus pudores de lado e fui procurar emprego.
Não tinha qualificações, então tive que me contentar com um cargo de trainee do auxiliar do sub-alguma-coisa. O Baiano que me arrumou o emprego. Um primo em segundo grau cujo cunhado era dono da empresa, alguma coisa assim. Trabalho burocrático e chato, mas dinheirinho garantido todo mês. Fui ficando. O salário mais a mixaria que ganhava no bordéu me proporcionavam o suficiente para o aluguel, as contas e um cinema de vez em quando. Muito de vez em quando.
Já estava até me acostumando com a idéia de uma brilhante carreira no mundo das seguradoras de quinta categoria quando o negócio começou a degringolar: o cunhado do primo do Baiano começou a ter prejuízo e teve que demitir alguns funcionários, sendo três da minha área. E como não podia botar jukeboxes no lugar deles, acabou sobrando para mim. Trabalhava por quatro homens recebendo um salário de anão, se é que anão ganha proporcionalmente ao tamanho. Acho que não.
Aquilo foi me desgastando. Tinha que fazer hora extra todo dia, e no fim do mês as horas extras não eram pagas. "Depois você compensa", dizia o cunhado do etc., e nunca especificava quando seria esse "depois". Sem tempo nem para dar uma cochilada depois do trabalho, chegava em casa, tomava um banho e saía correndo pra ir tocar. Comecei a errar acordes com mais freqüência que o habitual, a trocar as letras das músicas. Não que alguém reparasse – num puteiro o músico é um homem invisível – mas aquilo estava mexendo com meus brios.
Um dia acordei com o toque estridente do rádio-relógio. Seis da manhã. Dei um tapa no aparelho maldito e voltei a dormir. Ele tocou novamente às seis e nove. Seis e nove. Por que esses rádio-relógios têm o intervalo programado para NOVE minutos? Por que não dez? O inventor do rádio-relógio tinha nove dedos? Comecei a pensar essas bobagens e percebi que estava me deixando cercar por essas coisas sem sentido: o rádio relógio, as pessoas que se empurravam feito gado no metrô, um trapo me apertando o pescoço, o paletó num país tropical. Olhei para o canto e lá estava meu violão velho de guerra.
Não precisei pensar muito: vesti uma calça jeans e uma camiseta, calcei um sapato velho, peguei o violão e repeti pela última vez a via-crúcis da minha casa até a Paulista. Não subi para o escritório, no entanto: Postei-me na calçada em frente ao prédio e comecei a tocar. As pessoas que iam chegando, muitas delas conhecidas, olhavam surpresas e divertidas para o ex-funcionário, agora metido a menestrel da metrópole. Meio de piada alguém jogou uma nota de um real na caixa do violão. Tive uma sensação de dejà-vu.
Quando meu gerente chegou e viu aquilo quase teve um troço.
– Rapaz, você quer perder seu emprego?
– Não há nada que eu queira mais no mundo, Seu Ferreira.
– Você é louco???
– Totalmente.
– Está na rua!
– Não, estou na calçada. Algum pedido, Seu Ferreira?
– VÁ PRO INFERNO!
– Ok. De que vale o céu azul/e o sol sempre a brilhar/se você não vem/e eu estou a te esperar...
Bufando de ódio, Seu Ferreira entrou no prédio.
No fim do dia, tendo arrecadado o dobro do que ganharia num dia de trabalho, subi para o escritório. Meu termo de rescisão estava pronto. Em seis meses eu era demitido pela segunda vez, mas agora estava feliz: pelo menos tinha meu FGTS pra gastar.
Desde então tenho tocado nas ruas e não posso reclamar: Ganho mais do que ganhava no bar antes. Consegui comprar um amplificador decente e um microfone, e espero já poder arrumar um percussionista no próximo mês. Continuo procurando emprego em bares, no entanto. Essa vida de músico mambembe é meio arriscada demais pro meu gosto. Se alguém aí souber de um bar que precise de um músico meia-boca mas de bom coração, por favor me diga.
1/16/2003
"Eu vou desdizer
aquilo tudo que eu lhe disse antes"
(Metamorfose Ambulante - Raul Seixas)
Reconquistar Luiza. Será? Não sei... Passei tanto tempo endeusando Luiza, e quando nos reencontramos não foi nada do que eu esperava. Sim, foi bom, foi ótimo, mas não foi aquela revolução toda que eu esperava. Sexo razoavelmente agradável, com a mulher indo embora na manhã seguinte. Tudo o que um homem poderia querer. Senti uma certa exaltação durante aquela manhã, só pensava nela o tempo todo. Mas acho que era a fome: Depois do almoço, eu nem lembrava direito como tinha sido.
O fato é que Luiza é só uma garota. E existem muitas outras por aí. Mulheres até mais interessantes que ela, por mais que me doa admitir isso agora. Sábado, por exemplo. Estava tocando no bar quando entrou o Sabichão. Droga, achei que ele tivesse morrido. Mas lá estava ele, com algumas pessoas que eu nunca tinha visto (ele deve trocar de amigos de vez em quando. Ninguém o agüentaria por muito tempo). Sentaram-se numa mesa comprida e ele começou logo a fazer acordes com os dedos da mão esquerda pressionando cordas imaginárias no pulso direito. Coisa irritante. Pensei em chamá-lo para dar uma "canja" no palco, só para fazê-lo passar vergonha. Aposto meu violão como ele não toca nada. Mas achei melhor ignorá-lo. Só que ao final da música que estava tocando, notei que ele me olhava fixamente e preparava-se para dizer algo. Ele ia gritar "Toca Chega de Saudade!", e depois ficar babando o ovo do João Gilberto. Ia, claro que ia. O Sabichão nunca deixa de fazer isso, faz parte de seu roteiro. No entanto, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, uma das meninas que estava na mesa gritou para o palco, com um delicioso sotaque carioca:
– Toca o Bonde do Tigrão!
Todos no bar riram, com exceção de duas pessoas: O Sabichão, visivelmente contrariado pela invasão, e eu, que apenas olhei com admiração e gratidão para a garota, emendando em seguida uma tosca versão bossa-nova do Bonde do Tigrão. Por essa ela não esperava. Nem o Sabichão, que não deve ter gostado nada de ver um funk carioca tocado com a sacrossanta batida de seu deus e senhor João Gilberto. Ele ficou amuado o resto do tempo, olhando para dentro de sua caneca de chope, enquanto eu e a garota trocávamos olhares. No intervalo, fui falar com ela.
– E aí? Gostou da música?
– Gostei muito. Bom saber que você conhece os clássicos da MPB.
– Hehehe. Qual o seu nome?
– Não adianta. Não tenho nome de música.
(Hein?!)
– Perdão?
– Não se faça de bobo. Meu pai é músico, conheço as táticas de vocês. Se eu me chamasse Carolina, você ia voltar lá pro palco e cantar Carolina para mim. Mas como eu não tenho nome de música, você vai cantar alguma coisa genérica. Você é Linda ou Este Seu Olhar. E depois vai me chamar para sair. Certo?
– Hum. Bom... É, em linhas gerais é isso aí...
– Pois é.
– Pois é. Então. Preciso voltar lá.
– Ok. Se quiser tocar mais algum funk, eu agradeço.
– Tá bom.
Voltei para o meu canto, mas não toquei funk nenhum. Fiquei encucado com a carioca. Não estou acostumado com isso, mulheres me desafiando daquela maneira. Talvez por isso mesmo não ache nenhuma mulher interessante, e viva sofrendo com a lembrança de Luiza. Mas se existe uma mulher como aquela, devem existir outras. E se existem outras, ficar sofrendo por uma que está distante é um desperdício de tempo.
Na hora de ir, ela veio se despedir de mim.
– Desculpe se fui malcriada com você. É que sou assim às vezes, falo sem pensar e...
– Gostei do seu jeito. Você é uma boa menina. Mas e aí, não vai nem me dizer seu nom...
– Bianca! – O Sabichão gritou da porta do bar – Só estamos esperando você!
(Maldito...)
– Ok, já tô indo. Bom, agora você já sabe meu nome. Tchau.
– Tchau. Obrigado.
– Ué, obrigado por quê?
– Ah, nada. Deixa pra lá.
E lá se foi ela. Acho que não nos veremos de novo. Sequer trocamos números de telefone. Bom, talvez eu pergunte ao Sabichão da próxima vez em que ele vier. Sim, sou capaz de fazer esse sacrifício. Bianca... É, não conheço mesmo nenhuma música com esse título. Talvez eu tenha que compor.
aquilo tudo que eu lhe disse antes"
(Metamorfose Ambulante - Raul Seixas)
Reconquistar Luiza. Será? Não sei... Passei tanto tempo endeusando Luiza, e quando nos reencontramos não foi nada do que eu esperava. Sim, foi bom, foi ótimo, mas não foi aquela revolução toda que eu esperava. Sexo razoavelmente agradável, com a mulher indo embora na manhã seguinte. Tudo o que um homem poderia querer. Senti uma certa exaltação durante aquela manhã, só pensava nela o tempo todo. Mas acho que era a fome: Depois do almoço, eu nem lembrava direito como tinha sido.
O fato é que Luiza é só uma garota. E existem muitas outras por aí. Mulheres até mais interessantes que ela, por mais que me doa admitir isso agora. Sábado, por exemplo. Estava tocando no bar quando entrou o Sabichão. Droga, achei que ele tivesse morrido. Mas lá estava ele, com algumas pessoas que eu nunca tinha visto (ele deve trocar de amigos de vez em quando. Ninguém o agüentaria por muito tempo). Sentaram-se numa mesa comprida e ele começou logo a fazer acordes com os dedos da mão esquerda pressionando cordas imaginárias no pulso direito. Coisa irritante. Pensei em chamá-lo para dar uma "canja" no palco, só para fazê-lo passar vergonha. Aposto meu violão como ele não toca nada. Mas achei melhor ignorá-lo. Só que ao final da música que estava tocando, notei que ele me olhava fixamente e preparava-se para dizer algo. Ele ia gritar "Toca Chega de Saudade!", e depois ficar babando o ovo do João Gilberto. Ia, claro que ia. O Sabichão nunca deixa de fazer isso, faz parte de seu roteiro. No entanto, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, uma das meninas que estava na mesa gritou para o palco, com um delicioso sotaque carioca:
– Toca o Bonde do Tigrão!
Todos no bar riram, com exceção de duas pessoas: O Sabichão, visivelmente contrariado pela invasão, e eu, que apenas olhei com admiração e gratidão para a garota, emendando em seguida uma tosca versão bossa-nova do Bonde do Tigrão. Por essa ela não esperava. Nem o Sabichão, que não deve ter gostado nada de ver um funk carioca tocado com a sacrossanta batida de seu deus e senhor João Gilberto. Ele ficou amuado o resto do tempo, olhando para dentro de sua caneca de chope, enquanto eu e a garota trocávamos olhares. No intervalo, fui falar com ela.
– E aí? Gostou da música?
– Gostei muito. Bom saber que você conhece os clássicos da MPB.
– Hehehe. Qual o seu nome?
– Não adianta. Não tenho nome de música.
(Hein?!)
– Perdão?
– Não se faça de bobo. Meu pai é músico, conheço as táticas de vocês. Se eu me chamasse Carolina, você ia voltar lá pro palco e cantar Carolina para mim. Mas como eu não tenho nome de música, você vai cantar alguma coisa genérica. Você é Linda ou Este Seu Olhar. E depois vai me chamar para sair. Certo?
– Hum. Bom... É, em linhas gerais é isso aí...
– Pois é.
– Pois é. Então. Preciso voltar lá.
– Ok. Se quiser tocar mais algum funk, eu agradeço.
– Tá bom.
Voltei para o meu canto, mas não toquei funk nenhum. Fiquei encucado com a carioca. Não estou acostumado com isso, mulheres me desafiando daquela maneira. Talvez por isso mesmo não ache nenhuma mulher interessante, e viva sofrendo com a lembrança de Luiza. Mas se existe uma mulher como aquela, devem existir outras. E se existem outras, ficar sofrendo por uma que está distante é um desperdício de tempo.
Na hora de ir, ela veio se despedir de mim.
– Desculpe se fui malcriada com você. É que sou assim às vezes, falo sem pensar e...
– Gostei do seu jeito. Você é uma boa menina. Mas e aí, não vai nem me dizer seu nom...
– Bianca! – O Sabichão gritou da porta do bar – Só estamos esperando você!
(Maldito...)
– Ok, já tô indo. Bom, agora você já sabe meu nome. Tchau.
– Tchau. Obrigado.
– Ué, obrigado por quê?
– Ah, nada. Deixa pra lá.
E lá se foi ela. Acho que não nos veremos de novo. Sequer trocamos números de telefone. Bom, talvez eu pergunte ao Sabichão da próxima vez em que ele vier. Sim, sou capaz de fazer esse sacrifício. Bianca... É, não conheço mesmo nenhuma música com esse título. Talvez eu tenha que compor.
1/06/2003
"It's mightier than swords:
I could kill you, sure, but I could
Only make you cry with these words"
(Get Me Away From Here I'm Dying - Belle & Sebastian)
Passei a semana toda após o Natal pensando que nada superaria aquela noite fazendo serenata para os velhinhos no asilo. Ah, se eu soubesse o que o Ano Novo me reservava...
No dia 29 recebi o telefonema de um velho companheiro de trabalho. Um baterista que chegou a me acompanhar nos bons tempos em que o bar tinha palco e eu tinha dinheiro. Estava desesperado: Sua banda tinha sido contratada para tocar na virada do ano. Festa de uns bacanas em Osasco, boa grana, repertório fácil, bebida de graça. Só que o guitarrista e vocalista da banda tinha resolvido ter um ataque de vaidade no Natal e abandonara o barco, deixando a ele e o baixista de calças na mão. Bom, a história parecia comprida demais, então achei melhor ser direto:
– Quanto?
Ele me disse uma quantia razoável. Hum.
– E bebida à vontade?
– À vontade.
– Tô nessa. Mas precisamos ensaiar.
– Tudo bem. Não tem muito o que ensaiar, o repertório é aquele de sempre: Rock antigo, uma ou outra balada, umas coisinhas de MPB e samba que é mais sua praia. Cê tira de letra. E então, posso confirmar você?
– Pode sim.
– Que beleza! Agora só precisamos de uma guitarra solo.
– Hum...
– Quê?
(ODEIO guitarristas-solo!)
– Nada não. Té mais, Jaime.
– Té mais.
Tudo combinado, só precisamos ensaiar um pouco no dia seguinte. O Jaime é muito bom no que faz, o baixista era excelente. E até que o tal guitarrista-solo nem era tão intragável. Não ficava fazendo macaquices nem nada assim. No dia 31, peguei o Jaime na casa dele e fomos para a tal festa. Passamos o som rapidamente enquanto os primeiros convidados chegavam. Lá pelas tantas, casa lotada, começamos a tocar. Hotel California, para começar de um jeito bem óbvio. E depois teve de tudo: Pearl Jam, REM, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Frank Sinatra, Strokes. Tudo muito bom, tudo muito bem.
E aí veio a ruptura. Lembro a música, Não Chore Mais. Pra falar a verdade, lembro até o acorde que errei: Era pra tocar um dó maior. Mas aí eu vi Luiza entrando no salão e enfiei um ré menor que não tinha nada a ver com a música. A voz tentou acompanhar o acorde torto e senti o olhar de estranhamento dos outros músicos. Fiz um esforço enorme para voltar a me concentrar na música, e consegui terminá-la sem deslizes maiores que o leve tremor na voz. Era ela. Luiza. Meu Deus, era Luiza. De verdade, ali na minha frente. O cabelo estava diferente. Notei – com prazer indisfarçável – que ela estava mais gorda. Mas logo pensei que ela também devia ter percebido que eu estava mais pálido e que minhas olheiras quase ocupavam a cara toda, então achei melhor declarar empate.
Ela não deu mostras de ter ficado abalada ao me ver. E não demonstraria mesmo, essa é uma das coisas que admiro nela, essa presença de espírito. Olhou rapidamente para mim e depois foi sentar-se numa mureta no lado oposto do salão. Estava com um sujeito esquisito, branco demais, cabelo cuidadosamente penteado. Ele era um dos dois únicos homens da festa a usarem gravata. O outro era o baixista, mas neste a gravata era um acessório arrojado, enquanto a gravata do acompanhante de Luiza o fazia parecer um rábula interiorano.
Terminada a música, inventei um intervalo (adoro inventar intervalos), tomei uma dose de uísque puro para criar coragem e fui falar com o casal.
– Oi.
– Ah, você – gelo –. Tudo bem?
– Tudo.
Apresentou-me a ele como "um amigo"; e ele a mim como "meu namorado". Porra nenhuma! Podia ver que era só um casinho, que ela promovera a namorado de improviso só para esfregar na minha cara. Ficamos os três lá conversando por um tempo. Bom, não exatamente: Eu conversava com Luiza e às vezes ouvia uns chiados de interferência que identificava vagamente como tentativas de participação por parte do rapaz de gravata. Estávamos num momento particularmente agradável da conversa (falávamos sobre Jorge Ben, enquanto ele, queixo apoiado na mão, dava demonstrações inequívocas de tédio profundo), quando o pager dele soou escandalosamente.
– Putz, trabalho. Me dão licença? Preciso fazer uma ligação.
– À vontade.
Ele saiu em direção aos banheiros para poder usar o celular longe do barulho. Voltou todo atrapalhado, dizendo que precisaria ir ao escritório para resolver um problema. Caprichei na minha cara de "Oh, mas que pena!" e me despedi dele, compungido.
– Se der eu volto aqui – Ele avisou para Luiza, que não parecia tão ansiosa pela volta do "namorado". Eu poderia aproveitar a oportunidade, mas também estava trabalhando na noite de Ano Novo, então retornei ao palco e anunciei uma sessão "voz e violão", para surpresa dos outros músicos, que não esperavam descansar mais tempo ainda. Rebusquei a memória à procura dos acordes certos e comecei a tocar "Don't Leave The Light On, Baby" do Belle & Sebastian.
Semanas antes de ir embora, Luiza aparecera com um CD da banda escocesa, toda empolgada. Eu torci o nariz, como sempre faço diante de novidades. E reagi com minha costumeira delicadeza quando o CD ainda nem chegara à metade:
– Isso é música de veado.
Ela não disse nada: Tirou o CD e não se falou mais nisso. Quando partiu, o CD foi uma das coisas que deixou para trás. E não sei se virei veado ou não, mas o fato é que comecei a apreciar de verdade aquelas músicas de uma alegria melancólica (ou vice-versa). Tocar essas músicas era uma forma de pedir desculpas a ela, e caprichei. Ah, Luiza! Eu poderia matá-la, claro. Mas eu poderia apenas fazer você chorar com essas palavras. E foi o que aconteceu: Movida pela situação toda, e ajudada pelo champanhe, ela foi às lágrimas. Pobre menina, tão frágil.
Depois voltamos ao repertório programado. Às quatro da manhã, o almofadinha não havia voltado. Ofereci carona a Luíza, tudo aconteceu como era de se esperar e acordei pela primeira vez no novo ano com ela surpreendentemente ao meu lado. Sorrimos um para o outro, compreendendo a ironia. Claro que depois ela foi tomada de culpa, e me pediu para não procurá-la mais, que era melhor assim, que éramos melhores separados. Mas, coisa rara!, sinto-me otimista. Afinal de contas, hoje é um novo dia de um novo tempo etc. etc. etc. E anotei mentalmente minha única resolução de Ano Novo: Reconquistar Luiza.
I could kill you, sure, but I could
Only make you cry with these words"
(Get Me Away From Here I'm Dying - Belle & Sebastian)
Passei a semana toda após o Natal pensando que nada superaria aquela noite fazendo serenata para os velhinhos no asilo. Ah, se eu soubesse o que o Ano Novo me reservava...
No dia 29 recebi o telefonema de um velho companheiro de trabalho. Um baterista que chegou a me acompanhar nos bons tempos em que o bar tinha palco e eu tinha dinheiro. Estava desesperado: Sua banda tinha sido contratada para tocar na virada do ano. Festa de uns bacanas em Osasco, boa grana, repertório fácil, bebida de graça. Só que o guitarrista e vocalista da banda tinha resolvido ter um ataque de vaidade no Natal e abandonara o barco, deixando a ele e o baixista de calças na mão. Bom, a história parecia comprida demais, então achei melhor ser direto:
– Quanto?
Ele me disse uma quantia razoável. Hum.
– E bebida à vontade?
– À vontade.
– Tô nessa. Mas precisamos ensaiar.
– Tudo bem. Não tem muito o que ensaiar, o repertório é aquele de sempre: Rock antigo, uma ou outra balada, umas coisinhas de MPB e samba que é mais sua praia. Cê tira de letra. E então, posso confirmar você?
– Pode sim.
– Que beleza! Agora só precisamos de uma guitarra solo.
– Hum...
– Quê?
(ODEIO guitarristas-solo!)
– Nada não. Té mais, Jaime.
– Té mais.
Tudo combinado, só precisamos ensaiar um pouco no dia seguinte. O Jaime é muito bom no que faz, o baixista era excelente. E até que o tal guitarrista-solo nem era tão intragável. Não ficava fazendo macaquices nem nada assim. No dia 31, peguei o Jaime na casa dele e fomos para a tal festa. Passamos o som rapidamente enquanto os primeiros convidados chegavam. Lá pelas tantas, casa lotada, começamos a tocar. Hotel California, para começar de um jeito bem óbvio. E depois teve de tudo: Pearl Jam, REM, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Frank Sinatra, Strokes. Tudo muito bom, tudo muito bem.
E aí veio a ruptura. Lembro a música, Não Chore Mais. Pra falar a verdade, lembro até o acorde que errei: Era pra tocar um dó maior. Mas aí eu vi Luiza entrando no salão e enfiei um ré menor que não tinha nada a ver com a música. A voz tentou acompanhar o acorde torto e senti o olhar de estranhamento dos outros músicos. Fiz um esforço enorme para voltar a me concentrar na música, e consegui terminá-la sem deslizes maiores que o leve tremor na voz. Era ela. Luiza. Meu Deus, era Luiza. De verdade, ali na minha frente. O cabelo estava diferente. Notei – com prazer indisfarçável – que ela estava mais gorda. Mas logo pensei que ela também devia ter percebido que eu estava mais pálido e que minhas olheiras quase ocupavam a cara toda, então achei melhor declarar empate.
Ela não deu mostras de ter ficado abalada ao me ver. E não demonstraria mesmo, essa é uma das coisas que admiro nela, essa presença de espírito. Olhou rapidamente para mim e depois foi sentar-se numa mureta no lado oposto do salão. Estava com um sujeito esquisito, branco demais, cabelo cuidadosamente penteado. Ele era um dos dois únicos homens da festa a usarem gravata. O outro era o baixista, mas neste a gravata era um acessório arrojado, enquanto a gravata do acompanhante de Luiza o fazia parecer um rábula interiorano.
Terminada a música, inventei um intervalo (adoro inventar intervalos), tomei uma dose de uísque puro para criar coragem e fui falar com o casal.
– Oi.
– Ah, você – gelo –. Tudo bem?
– Tudo.
Apresentou-me a ele como "um amigo"; e ele a mim como "meu namorado". Porra nenhuma! Podia ver que era só um casinho, que ela promovera a namorado de improviso só para esfregar na minha cara. Ficamos os três lá conversando por um tempo. Bom, não exatamente: Eu conversava com Luiza e às vezes ouvia uns chiados de interferência que identificava vagamente como tentativas de participação por parte do rapaz de gravata. Estávamos num momento particularmente agradável da conversa (falávamos sobre Jorge Ben, enquanto ele, queixo apoiado na mão, dava demonstrações inequívocas de tédio profundo), quando o pager dele soou escandalosamente.
– Putz, trabalho. Me dão licença? Preciso fazer uma ligação.
– À vontade.
Ele saiu em direção aos banheiros para poder usar o celular longe do barulho. Voltou todo atrapalhado, dizendo que precisaria ir ao escritório para resolver um problema. Caprichei na minha cara de "Oh, mas que pena!" e me despedi dele, compungido.
– Se der eu volto aqui – Ele avisou para Luiza, que não parecia tão ansiosa pela volta do "namorado". Eu poderia aproveitar a oportunidade, mas também estava trabalhando na noite de Ano Novo, então retornei ao palco e anunciei uma sessão "voz e violão", para surpresa dos outros músicos, que não esperavam descansar mais tempo ainda. Rebusquei a memória à procura dos acordes certos e comecei a tocar "Don't Leave The Light On, Baby" do Belle & Sebastian.
Semanas antes de ir embora, Luiza aparecera com um CD da banda escocesa, toda empolgada. Eu torci o nariz, como sempre faço diante de novidades. E reagi com minha costumeira delicadeza quando o CD ainda nem chegara à metade:
– Isso é música de veado.
Ela não disse nada: Tirou o CD e não se falou mais nisso. Quando partiu, o CD foi uma das coisas que deixou para trás. E não sei se virei veado ou não, mas o fato é que comecei a apreciar de verdade aquelas músicas de uma alegria melancólica (ou vice-versa). Tocar essas músicas era uma forma de pedir desculpas a ela, e caprichei. Ah, Luiza! Eu poderia matá-la, claro. Mas eu poderia apenas fazer você chorar com essas palavras. E foi o que aconteceu: Movida pela situação toda, e ajudada pelo champanhe, ela foi às lágrimas. Pobre menina, tão frágil.
Depois voltamos ao repertório programado. Às quatro da manhã, o almofadinha não havia voltado. Ofereci carona a Luíza, tudo aconteceu como era de se esperar e acordei pela primeira vez no novo ano com ela surpreendentemente ao meu lado. Sorrimos um para o outro, compreendendo a ironia. Claro que depois ela foi tomada de culpa, e me pediu para não procurá-la mais, que era melhor assim, que éramos melhores separados. Mas, coisa rara!, sinto-me otimista. Afinal de contas, hoje é um novo dia de um novo tempo etc. etc. etc. E anotei mentalmente minha única resolução de Ano Novo: Reconquistar Luiza.
12/26/2002
"Danço eu, dança você
na dança da solidão"
(Dança da Solidão - Paulinho da Viola)
Noite de Natal em excelente companhia: Uma garrafa de champanhe francês, presente do Baiano. Bebo e tento não pensar que é Natal. Mas é inevitável, então deixo os pensamentos fluírem livremente. Penso com tristeza nos mortos, e com maior tristeza ainda nos vivos que foram embora por vontade própria, por força das circunstâncias ou expulsos por essa minha obssessão pelo isolamento.
Minha mãe ligou pouco depois da meia-noite para desejar um feliz Natal e me dar conselhos. Que eu deveria pensar mais na vida. Que eu bem que podia ter ido passar o Natal com a família. Que já passei dos trinta anos, não posso mais ter esse comportamento de adolescente sem rumo. E etcetera. O mesmo papo de todos os anos. Eu só dou respostas evasivas, ou então me calo. O que responderia? Que penso muito na vida, e que é isso que me afunda? Que passar o Natal com a família seria um inferno, com meu pai me olhando com o desprezo que tem por mim desde que decidi que viria para São Paulo viver de música ou de qualquer outra coisa, em vez de ser engenheiro como ele e toda a família? Que sem rumo estamos todos, adolescentes ou não, e os que têm a ilusão de que estão seguindo um caminho só pensam assim porque estão parados? Não, melhor não responder nada. "Eu sei, mãe". "Ano que vem, mãe". "Pois é, mãe". "Bença, mãe".
Desligo o telefone depois de alguns minutos. Tanto eu quanto ela ficamos constrangidos. Raramente nos falamos, e essas conversas obrigatórias em datas especiais acabam sempre sendo cheias de lacunas, de pausas longas demais, de hesitações. Eu não queria que fosse assim, acho que ela também não. Mas não escolhemos isso. Assim como não escolhemos quase nada em nossas vidas. Temos isso em comum. Ergo a taça num brinde meio irônico à minha progenitora. Ê, mãe, olha só o que você foi botar no mundo!
E é isso o meu Natal. Beber um pouco, assistir a alguma bobagem na TV, ligar pra dois ou três amigos para falar bobagens e fingir que nã estou sozinho. Mas estou. E todos estão. Podem se cercar de centenas de pessoas, e gritar, e dançar, e beber até cair: Estão tão sós quanto eu, ou mais ainda, por não admitirem sua solidão. Um brinde a eles, os homens, meus irmãos!
E um brinde a você, Luiza. Sem taça, bebo a você no gargalo. Um brinde a você, que fez minha vida sair rodopiando por aí e depois cortou a corda, e a pobrezinha saiu pela tangente e está até agora tentando se recuperar da pancada. Bebo a você, Luiza, e a tudo de bom, e ruim, e estranho, e amargo, e desconcertante que você representa para este pobre homem, sozinho na penumbra de seu apartamento alugado em plena noite de Natal.
* * *
Acabei dormindo no sofá, ainda com a garrafa na mão. O telefone me acordou horas depois.
– Alô?
– Ô, rapaz! Feliz Natal!
– Obrigado, Baiano. Pra você também.
– Ouche, como sabe que sou eu?
– Ninguém mais tem esse sotaque de novela, Baiano.
– Sotaque de novela tem a tua mãe! Tá fazendo o quê aí?
– Bebendo o champanhe que você me deu e lamentando minha vida.
– Vixe, rapaz! Largue de viadagem e bora sair por aí!
– Sair pra onde?
– Ah, sei lá! Pega o violão aí e vamos fazer serenata!
– Serenata, Baiano? Pra quem é que a gente vai fazer serenata na noite de Natal, rapaz?
– Ah, eu tava aqui pensando. Tem um asilo ali perto de casa. Acho que os velhinhos iam gostar de uma serenata. Você podia tocar alguma coisa de Orlando Silva e tal...
– Que raio de idéia é essa, Baiano?
– Bora lá! Cê não tá fazendo nada aí, vai acabar a noite bêbado e chorando, pensando naquela moça. Te conheço! Que que custa sair um pouco, se divertir, alegrar um pouco a vida de uns cabras que já tão mais pra lá do que pra cá?
– Mas... Mas e se os caras lá do asilo chamarem a polícia?
– É bem capaz que chamem mesmo. E daí? Perturbação da ordem não dá cadeia. O que você me diz? Vamos ou não?
– É, tá bom. Vamos.
Nunca pensei que teria um Natal assim algum dia: Meio que encarapitado num muro, tocando violão e fazendo a segunda voz, enquanto o Baiano soltava seu vozeirão de barítono bêbado. Aos poucos algumas janelas do asilo foram se abrindo, e no final, quando tocamos Rosa, um pequeno côro de pequenas vozes cansadas nos acompanhou: "Tu és/Divina, graciosa/Estátua majestosa/Do amor/Por Deus esculturada...". É claro que depois disso uma funcionária veio nos pedir muito educadamente que nos retirássemos. Nada mal para quem esperava a polícia. E tenho a impressão de ter ouvido uns aplausos tímidos no final.
O Baiano me deixou em casa pelas quatro da manhã. Perguntou se eu não queria um pouco de erva, um presentinho de Natal. Não aceitei. Estava sentindo coisas bonitas cá dentro de mim, e queria me manter lúcido para saborear o momento.
na dança da solidão"
(Dança da Solidão - Paulinho da Viola)
Noite de Natal em excelente companhia: Uma garrafa de champanhe francês, presente do Baiano. Bebo e tento não pensar que é Natal. Mas é inevitável, então deixo os pensamentos fluírem livremente. Penso com tristeza nos mortos, e com maior tristeza ainda nos vivos que foram embora por vontade própria, por força das circunstâncias ou expulsos por essa minha obssessão pelo isolamento.
Minha mãe ligou pouco depois da meia-noite para desejar um feliz Natal e me dar conselhos. Que eu deveria pensar mais na vida. Que eu bem que podia ter ido passar o Natal com a família. Que já passei dos trinta anos, não posso mais ter esse comportamento de adolescente sem rumo. E etcetera. O mesmo papo de todos os anos. Eu só dou respostas evasivas, ou então me calo. O que responderia? Que penso muito na vida, e que é isso que me afunda? Que passar o Natal com a família seria um inferno, com meu pai me olhando com o desprezo que tem por mim desde que decidi que viria para São Paulo viver de música ou de qualquer outra coisa, em vez de ser engenheiro como ele e toda a família? Que sem rumo estamos todos, adolescentes ou não, e os que têm a ilusão de que estão seguindo um caminho só pensam assim porque estão parados? Não, melhor não responder nada. "Eu sei, mãe". "Ano que vem, mãe". "Pois é, mãe". "Bença, mãe".
Desligo o telefone depois de alguns minutos. Tanto eu quanto ela ficamos constrangidos. Raramente nos falamos, e essas conversas obrigatórias em datas especiais acabam sempre sendo cheias de lacunas, de pausas longas demais, de hesitações. Eu não queria que fosse assim, acho que ela também não. Mas não escolhemos isso. Assim como não escolhemos quase nada em nossas vidas. Temos isso em comum. Ergo a taça num brinde meio irônico à minha progenitora. Ê, mãe, olha só o que você foi botar no mundo!
E é isso o meu Natal. Beber um pouco, assistir a alguma bobagem na TV, ligar pra dois ou três amigos para falar bobagens e fingir que nã estou sozinho. Mas estou. E todos estão. Podem se cercar de centenas de pessoas, e gritar, e dançar, e beber até cair: Estão tão sós quanto eu, ou mais ainda, por não admitirem sua solidão. Um brinde a eles, os homens, meus irmãos!
E um brinde a você, Luiza. Sem taça, bebo a você no gargalo. Um brinde a você, que fez minha vida sair rodopiando por aí e depois cortou a corda, e a pobrezinha saiu pela tangente e está até agora tentando se recuperar da pancada. Bebo a você, Luiza, e a tudo de bom, e ruim, e estranho, e amargo, e desconcertante que você representa para este pobre homem, sozinho na penumbra de seu apartamento alugado em plena noite de Natal.
Acabei dormindo no sofá, ainda com a garrafa na mão. O telefone me acordou horas depois.
– Alô?
– Ô, rapaz! Feliz Natal!
– Obrigado, Baiano. Pra você também.
– Ouche, como sabe que sou eu?
– Ninguém mais tem esse sotaque de novela, Baiano.
– Sotaque de novela tem a tua mãe! Tá fazendo o quê aí?
– Bebendo o champanhe que você me deu e lamentando minha vida.
– Vixe, rapaz! Largue de viadagem e bora sair por aí!
– Sair pra onde?
– Ah, sei lá! Pega o violão aí e vamos fazer serenata!
– Serenata, Baiano? Pra quem é que a gente vai fazer serenata na noite de Natal, rapaz?
– Ah, eu tava aqui pensando. Tem um asilo ali perto de casa. Acho que os velhinhos iam gostar de uma serenata. Você podia tocar alguma coisa de Orlando Silva e tal...
– Que raio de idéia é essa, Baiano?
– Bora lá! Cê não tá fazendo nada aí, vai acabar a noite bêbado e chorando, pensando naquela moça. Te conheço! Que que custa sair um pouco, se divertir, alegrar um pouco a vida de uns cabras que já tão mais pra lá do que pra cá?
– Mas... Mas e se os caras lá do asilo chamarem a polícia?
– É bem capaz que chamem mesmo. E daí? Perturbação da ordem não dá cadeia. O que você me diz? Vamos ou não?
– É, tá bom. Vamos.
Nunca pensei que teria um Natal assim algum dia: Meio que encarapitado num muro, tocando violão e fazendo a segunda voz, enquanto o Baiano soltava seu vozeirão de barítono bêbado. Aos poucos algumas janelas do asilo foram se abrindo, e no final, quando tocamos Rosa, um pequeno côro de pequenas vozes cansadas nos acompanhou: "Tu és/Divina, graciosa/Estátua majestosa/Do amor/Por Deus esculturada...". É claro que depois disso uma funcionária veio nos pedir muito educadamente que nos retirássemos. Nada mal para quem esperava a polícia. E tenho a impressão de ter ouvido uns aplausos tímidos no final.
O Baiano me deixou em casa pelas quatro da manhã. Perguntou se eu não queria um pouco de erva, um presentinho de Natal. Não aceitei. Estava sentindo coisas bonitas cá dentro de mim, e queria me manter lúcido para saborear o momento.
12/17/2002
"Ninguém pode explicar a vida
num samba curto"
(Num Samba Curto - Paulinho da Viola)
Não é Luiza. Luiza já faz tempo. Luiza nem dói mais, se eu não cutucar. Fica latejando, mas nada de insuportável, longe disso.
Também não é o japonês que se matou. Ele tomou sua decisão, planejou o que queria e seu plano foi bem-sucedido. Não fico triste por ele. Sequer penso nele, e só me lembrei ao começar a escrever.
Sou eu. Sou eu e essas músicas. Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Djavan, Gonzaguinha, Cazuza. Todos homens tristes que escreveram ou ainda escrevem seus versos tristes. E eu canto esses versos todos os dias, por profissão. Não há como não se deixar influenciar, por mais que eu tente. Associo trechos de músicas a cada acontecimento, por banal que seja, e essa é minha principal loucura. Quero escapar disso e não consigo. Agora mesmo que pensei nisso, e comecei a perceber o quanto isso atrapalha minha vida, o trecho de "Num Samba Curto" surgiu espontaneamente na minha cabeça, antes mesmo do raciocínio. Insuportável ironia.
Preciso fugir disso. Preciso impedir a erosão da minha sanidade. Um emprego. Um emprego normal, de acordar cedo e ir para um escritório, e fazer uma hora de almoço, e voltar para casa no fim da tarde. Mas o que é que eu sei fazer? Meus detratores dirão que não sei fazer nem o que deveria saber, que é tocar violão e cantar; e eu serei o primeiro a concordar. No entanto, sou uma espécie de autista, um deficiente cuja única capacidade é essa, de cantar mal e tocar pior. Para todas as outras coisas, sou um completo inútil.
Então continuo. Contra minha vontade, continuo. Entre uma música e outra, um pouco de álcool para enganar a mente. Entre o bar e o puteiro, mais uma mulher genérica e descartável, mais um enorme desperdício de tempo. Ok, gostei muito de ter te conhecido, mas eu andei pensando, acho melhor a gente parar antes que blablablá. Sempre o mesmo papo, e uma vontade imensa de dizer a verdade, "Você é chata", ou "Você beija mal", ou "Sua bunda é estranha", ou "Você é perfeita, mas não é Luiza". "Andei pensando" é o caralho, antes de embarcar em mais uma roubada dessas eu já sei que não vai dar em nada, e só levo adiante para comprovar minha incompetência.
São as músicas. Malditas músicas. E esse medo.
num samba curto"
(Num Samba Curto - Paulinho da Viola)
Não é Luiza. Luiza já faz tempo. Luiza nem dói mais, se eu não cutucar. Fica latejando, mas nada de insuportável, longe disso.
Também não é o japonês que se matou. Ele tomou sua decisão, planejou o que queria e seu plano foi bem-sucedido. Não fico triste por ele. Sequer penso nele, e só me lembrei ao começar a escrever.
Sou eu. Sou eu e essas músicas. Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Djavan, Gonzaguinha, Cazuza. Todos homens tristes que escreveram ou ainda escrevem seus versos tristes. E eu canto esses versos todos os dias, por profissão. Não há como não se deixar influenciar, por mais que eu tente. Associo trechos de músicas a cada acontecimento, por banal que seja, e essa é minha principal loucura. Quero escapar disso e não consigo. Agora mesmo que pensei nisso, e comecei a perceber o quanto isso atrapalha minha vida, o trecho de "Num Samba Curto" surgiu espontaneamente na minha cabeça, antes mesmo do raciocínio. Insuportável ironia.
Preciso fugir disso. Preciso impedir a erosão da minha sanidade. Um emprego. Um emprego normal, de acordar cedo e ir para um escritório, e fazer uma hora de almoço, e voltar para casa no fim da tarde. Mas o que é que eu sei fazer? Meus detratores dirão que não sei fazer nem o que deveria saber, que é tocar violão e cantar; e eu serei o primeiro a concordar. No entanto, sou uma espécie de autista, um deficiente cuja única capacidade é essa, de cantar mal e tocar pior. Para todas as outras coisas, sou um completo inútil.
Então continuo. Contra minha vontade, continuo. Entre uma música e outra, um pouco de álcool para enganar a mente. Entre o bar e o puteiro, mais uma mulher genérica e descartável, mais um enorme desperdício de tempo. Ok, gostei muito de ter te conhecido, mas eu andei pensando, acho melhor a gente parar antes que blablablá. Sempre o mesmo papo, e uma vontade imensa de dizer a verdade, "Você é chata", ou "Você beija mal", ou "Sua bunda é estranha", ou "Você é perfeita, mas não é Luiza". "Andei pensando" é o caralho, antes de embarcar em mais uma roubada dessas eu já sei que não vai dar em nada, e só levo adiante para comprovar minha incompetência.
São as músicas. Malditas músicas. E esse medo.
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