''Mas não tem nada não
tenho meu violão''

(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)

26.9.02

"Eu não sei dançar
tão devagar
pra te acompanhar."

(Eu Não Sei Dançar - Alvin L)

E a escritora acabou não sendo tão interessante como eu pensei que seria. Pior: Sequer sofria tanto quanto seu choro convulsivo fazia parecer.
Naquela noite saímos do bar já era alta madrugada e fomos tomar café numa padaria próxima. Fui preparado para ouivr empolgantes desventuras contadas por alguém com grande talento para isso. Decepção total: Nenhum amor impossível, nem romance com final trágico, nem mesmo uma dor adormecida que resolvera despertar de repente. Nada além de trivialidades: Contas vencidas, uma briga com a mãe -- morava com os pais --, um ex-namorado que não largava do pé. Tudo narrado em exaustivos detalhes com uma fala atropelada e aguda. Parecia ser uma dessas pessoas que vivem dizendo "Minha vida daria um livro"; aí você lê umas páginas e é um puta livro chato. Só que pessoas assim são geralmente inofensivas: Esquecem logo esse negócio de livro e vão tocando a vida. Ela não: Tinha resolvido que sua vida daria mesmo um livro, e gastava seu tempo passando mediocridades para o papel -- pobre papael, inocente do que nele se escreve.
Não me entendam mal, não quero com isso dizer que acho chatos escritores autobiográficos. Pelo contrário: Um cara cujos livros tenho prazer imenso em ler e reler é o Charles Bukowski, autobiográfico que só ele. E tem essa menina nova aí, Clarah Averbuck. Li o livro dela, gostei muito. Não sei quanto do que ali está é real e quanto é ficção, mas fica bem claro que tem muito de vida real, o que só dá sabor ao texto.
Minha escritora, porém, era chata até o fundo da alma. Repetitiva, prolixa, lamentosa, um horror. Mas o que esperar? Aquela vidinha sem graça não tinha como fornecer muito material, o desastre era previsível.
E ela achava genial tudo o que escrevia. Enchia cadernos e mais cadernos com sua caligrafia infantil, narrando banalidades como se fossem acontecimentos da máxima importância, sem nem mesmo um traço de humor, nem raiva, nem sarcasmo, nem nada. "Memórias de uma autista" seria um ótimo título, tão gritante era a ausência de qualquer carga emocional genuína em toda aquela prolífica coleção de bobagens.
Sei que passei quase cinco semanas sofrendo a tortura de ler aquelas páginas intermináveis; e todo dia ela me trazia mais. Sentia-me como Judas Iscariotes no último dos círculos do inferno, tendo seu fígado continuamente regenerado, apenas para ser devorado com gosto pelo Diabo mais uma vez, e outra, e outra, e assim por toda a eternidade.
Ao contrário de Judas e o capeta, no entanto, eu não tinha a eternidade à minha disposição. A conversa foi tensa, porém breve: O problema não é com você, é comigo, estou confuso, preciso pensar, não quero magoar você, o texto padrão. Ela até reagiu bem: Chorou um pouco no começo, mas logo se recompôs.E, mais importante, saiu sem quebrar nada. O rompimento de relacionamentos breves chega quase a ser agradável.
Só o que ainda me aflige às vezes é a possibilidade de ter me tornado eu também personagem daquelas histórias medonhas. Deus, é constrangedor!

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