"Usou com força uma caneta azul
e as frases de caneta
você não pode apagar.
As lágrimas que caem
deixam mais azuis as letras
e os olhos não conseguem enxergar"
(Frases Mais Azuis - Nando Reis)
O negócio é que eu preciso trabalhar, por mais que doa a ausência de Luiza. Com tantas mudanças, é reconfortante ver que o bar e o puteiro continuam os mesmos, a não ser por alguns poucos novos freqüentadores. No bar, por exemplo, tem aparecido essa garota de duas semanas pra cá. Magra, longos cabelos loiros, usa óculos. Belos peitinhos. Senta-se num canto, tira um caderno da bolsa e começa a escrever. O caderno está surrado, e ela usa aquelas canetas Faber Castell de ponta fina, que eu nem sabia que ainda existiam. Chega sempre cedo, por volta das sete, e sai sempre antes da meia-noite. Toma água com gás, às vezes uma caipirinha. Escreve o tempo todo, quase sem levantar a cabeça. Quando o faz é para chamar o garçom ou então quando se levanta para ir ao banheiro. Às vezes olha não para mim, mas através de mim, como se quisesse captar de onde vem a música. Nunca aplaude, nunca pede uma música, apenas se senta lá no canto dela e escreve. E eu, que tantas vezes me ressinto dos que não me aplaudem, acho que não me sentiria bem se ela o fizesse. A arte que ela produz é tão superior ao arremedo de arte que produzo em cima daquele palco minúsculo, e com tão poucas oportunidades de aplauso, que seria constrangedor vê-la reconhecendo como valioso o que faço.
No último sábado, porém, ela saiu da rotina. Chegou bem mais tarde, por volta das dez. Sentou-se no lugar de sempre, tirou o caderno da bolsa e começou a arrancar e rasgar várias páginas. Depois apoiou os cotovelos na mesa, enfiou os dedos entre os cabelos e ficou lá, cabisbaixa, sem escrever nada. Parecia estar lendo e relendo uma das páginas seguidamente, como se quisesse decorá-la.
Chamei o garçom
-- Afonso, leva uma caipirinha praquela moça ali, a escritora.
-- Mas ela não bebe, Luis!
-- Vai por mim, ela tá precisando.
Afonso esticou o beiço, que é o jeito dele dizer "Então tá, não digo nada" e foi providenciar a bebida para a moça. Quando finalmente ele trouxe, por coincidência eu estava tocando "Olhos nos olhos", do Chico: "Olhos nos olhos/Quero ver o que você diz/Quero ver como suporta/me ver tão feliz". Ela olhou para mim, ergueu o copo num brinde à distância e sorriu. E que sorriso, meu Deus! Tão triste, mas tão lindo... Compartilhamos a mesma dor, eu sei disso. E lá vou eu me perder de novo.
''Mas não tem nada não
tenho meu violão''
(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)
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