''Mas não tem nada não
tenho meu violão''

(Cotidiano nº2 - Toquinho & Vinicius)

17.9.02

"O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou"

(A Banda - Chico Buarque)

Vejam como são as coisas: Comecei a escrever isto aqui depois que Luiza me deixou, para poder ocupar minha mente. Queria contar minhas historinhas, só isso. Aí o desgraçado do japonês vai e mata a namorada. E depois eu começo a escrever justamente sobre quem? Sobre Luiza! Não é de se espantar, portanto, que meu projeto inicial, de escrever todos os dias, tenha sido frustrado. Mas tenho que continuar. Para minha sorte, ontem aconteceu um negócio estranho demais aqui no prédio, que passo a contar agora.
Bom, como já disse, acho que tenho idade para ser neto da maioria dos moradores. Mas não do Seu Afrânio: Acho que eu poderia passar tranqüilamente por bisneto dele. Seu Afrânio deve ter uns trezentos anos de idade. É muito sorridente e tem aqueles olhinhos brilhantes que só a absoluta senilidade proporciona. Sempre me cumprimenta efusivamente quando nos encontramos, tudo resultado de uma de suas loucuras passadas: Há cerca de três anos me ligou pedindo para ir ao seu apartamento. Estranhei, não freqüento meus vizinhos, pelas razõs óbvias e também pelo minha personalidade de bicho-do-mato. Mas seu Afrânio parecia excitado com alguma coisa, a curiosidade foi mais forte, e dez minutos depois eu estava sentado em seu sofá (tão velho quanto ele, parecia), esperando que ele me trouxesse "uma coisa" do quarto. Fiquei surpreso quando ele me trouxe um Tranquillo Giannini velho como o pecado e pediu que eu desse uma olhada. "Sabe como é, perdi a prática, não sei se afinei direito". Peguei o violão, e estava afinadíssimo. Disse isso a ele, que ficou muito satisfeito e começou a dedilhar. Porra, como vou descrever? Não sei direito o que era que ele estava tocando, não entendo de música clássica. Mas era lindo demais, suave demais. Acabei ficando a tarde inteira no apartamento dele, e aprendi muita coisa naquela tarde. No dia seguinte o encontrei no elevador e perguntei do violão. "Ah, meu filho, não toco há mais de trinta anos, nem me lembro!". Achei que estivesse brincando, mas não: Ele não se lembrava mesmo de ter tocado um dia antes. Desde então eu sempre pergunto do violão quando o encontro e ele só diz "Ah, quem sabe um dia eu volto a tocar". É caduquice, sim, mas acho que também tem um pouco de pudor nisso aí. Vai entender a cabeça de um velho maluco que fez o que fez ontem...
Deviam ser umas quatro da tarde. Fui acordado por uma algazarra lá embaixo. Abri a janela para ver o que era, e presenciei o melhor espetáculo gratuito da minha vida: Seu Afrânio andando pelo pátio com o ziper aberto, balanço o pinto e gritando "Já fui bom nisso! Já fui bom nisso!". As velhinhas, claro, horrorizadas, acabaram chamando a polícia, que chegou e acabou com a festa. Mas nem os policiais conseguiram ficar sérios diante da cena. Esse velho fraco aí dançou mesmo...
Ri muito na hora. Mas depois fiquei pensando: Seu Afrânio foi músico um dia. Deve ter conquistado mulheres em seu tempo fazendo serenatas.
Será que eu vou chegar nesse estado?
Ah, tomara!

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